O Ocidente tem uma longa tradição historiográfica, herdada dos Gregos e Romanos - povo de juristas, mas também de historiadores -. A estes acrescentem-se os Judeus, que registraram sua história, primeiramente por tradição oral – algo a ser levado a sério entre povos semitas do Oriente -, e, posteriormente, por escrito, com narrativa linear em prosa.
A Europa
Medieval, herdeira da Antigüidade Clássica, era espiritualmente herdeira dos
Judeus através das Escrituras Sagradas: o Antigo Testamento possui livros históricos,
como Êxodo, Josué, Juízes, Reis, Crônicas e Gênesis – este, no entanto, se
encaixa num contexto narrativo mais antigo que qualquer desses livros citados e
requer que se lhe dedique um texto exclusivo.
A religião da Europa Medieval, o Cristianismo, tem uma característica muito própria: não
se trata de uma “Filosofia” ou de uma mera “Doutrina”, e digo isto sem receio,
pois não nego a existência de uma Doutrina Cristã (atestada logo nos primeiros
artigos do Catecismo); apenas lembro que os ensinamentos de suas Escrituras e
sua parte Doutrinal seriam totalmente vazios, se certos fatos não tivessem
acontecido.
O
Cristianismo é uma Fé fundada sobre um fato, ou melhor, sobre três
acontecimentos tremendos, os mais significativos de toda a História:
Encarnação, Crucifixão e Ressurreição de Jesus Cristo. A Crucifixão seria
apenas mais um fato esquecido, se não fosse a Ressurreição, e eis porque São
Paulo diz que, se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa Fé.
Não causa
espanto que, desde o início, os cristãos tenham registrado por escrito os
insólitos acontecimentos que fundaram sua Fé, Esperança e Caridade. O
Cristianismo é uma religião de cronistas: seus Evangelhos são relatos
históricos, factuais; “Atos dos Apóstolos” é um livro historiográfico, com
prefácio similar aos da tradição grega, e escrito com a precisão de um espírito
criterioso que sabia do que estava falando.
Se os
Evangelistas trataram de pôr a escrito aquilo que viram e ouviram de Cristo,
gerações posteriores preservaram esses textos e passaram adiante os
ensinamentos tradicionais: tradidi quod et acepi (entreguei o que
recebi). Também preservaram as memórias e relíquias de seus mártires e
confessores.
Os Medievais, portanto, não eram alheios à conservação da memória, o que notamos
pela grande quantidade de Biografias (Vidas) escritas desde os primeiros tempos
que se seguiram ao fim do Mundo Antigo (fim este discutível, em maior ou menor
grau). Também temos várias Histórias, como a História dos Godos, de Jordanes
(c.a 520 d. C), História Lombarda, de Paulo Diácono(c.a 780 d.C), História
Eclesiástica dos Povos Ingleses, de São Beda (c.a 725), História dos Francos,
de Gregório de Tours (c.a 580), para citar alguns exemplos, apenas.
No entanto,
não faltam aqueles que afirmam não ter existido um senso histórico na Idade Média,
época para a qual tudo seria um eterno presente, em que as pessoas julgavam que
tudo o que era, tinha sido e continuaria a ser de modo idêntico. Com efeito, as
pinturas parecem anacrônicas, soldados romanos carregam alabardas, romanos usam
gibão e roupas burguesas do século XIV.
Os homens da Idade Média, entretanto, tinham, sim, um senso de mudança histórica. Não
pretendemos afirmar que a História, na Idade Média, revestia-se das mesmas noções
e objetivos hodiernos. No século XIX, a História ganhou status de disciplina
autônoma, com metodologia própria e um variado leque de ciências auxiliares –
crítica textual, numismática, arqueologia, paleografia, filologia, métodos de
datação - com a missão de desvendar o passado, aferir a veracidade deste ou
daquele evento, penetrar a mentalidade de uma época, como um estudioso diante
de seu objeto de análise.
A História não existia como disciplina independente, mas seu estudo fazia parte
da boa formação, sendo inseparável da literatura: Suetônio, Lívio, César,
Eusébio, Paulo Orósio, Salviano, entre outros, foram copiados, preservados e
estudados em toda a Idade Média. A noção de História como uma mestra da vida,
já existente entre os romanos, também estava presente nos medievais, que
fizeram dos Exempla úteis
instrumentos de pregação.
Os homens
medievais podiam não cultivar essa Disciplina por si mesma, como ars gratia artis; certamente careciam
dos modernos instrumentos à disposição do arqueólogo; talvez não soubessem como
os Egípcios antigos se vestiam, ou tivessem uma idéia precária da arquitetura
Babilônica; entretanto, isso não significa que para as pessoas daquela época os
tempos sempre tivessem sido iguais, sem mudanças.
Pode-se
dizer que a Idade Média teve três noções de História: a noção clássica, a proto-científica
e a profética. A primeira já estava presente nos autores clássicos e visava a dar
exemplos para instrução pessoal. A segunda noção, chamada de proto-científica, via
na História Universal o plano divino e buscava coincidir os eventos bíblicos
com a história profana. A terceira visava a identificar, nos marcos históricos,
as referências das profecias, determinar o estado do tempo presente e prever os
próximos eventos[1].
Neste
ensaio, trataremos da segunda noção, baseando-nos em Santo Agostinho e Paulo Orósio,
dois autores importantes para a Filosofia da História e que influenciaram
centenas de escritores ao longo da Idade Média.
Fundamental
para uma noção cristã e medieval do tempo é a passagem da Carta de São Paulo
aos Coríntios: “Eis que vos digo, irmãos: o tempo é breve” (I Cor 7, 29). Para
os cristãos, o tempo há de acabar, não só individualmente, pela morte, mas
também coletivamente pelo fim deste mundo, que, no começo da Igreja, parecia iminente.
O tempo é um
desprendimento da Eternidade e surgiu, segundo S. Agostinho, no momento mesmo
da Criação (A Cidade de Deus, Livro XI, 6). O tempo é intrinsecamente ligado à
matéria circunscrita, logo, acabará com ela. Eis o porquê da advertência de São
Paulo em sua carta.
Contudo,
passadas algumas décadas após a Ascensão de Cristo, o Fim dos Tempos se tornou
distante, adiado para um momento futuro e indeterminável, mas tão certo quanto
foi o começo de tudo, quando da Eternidade Deus criou a matéria. Foi a certeza do começo e do fim que deu aos homens medievais o seu senso de história.
A História humana surge com a Criação, continua com
o Pecado e as sucessivas gerações de filhos de Adão, com desastres e glórias,
castigos e milagres, ódio e caridade, santos e pecadores, a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, até o seu Fim.
Santo Agostinho (354-430)
A África romana
abrangia o norte do Continente, onde hoje se localizam Tunísia e Argélia, que no
século IV compunham a Província da África, a mais rica do Ocidente, além de importante
polo cultural. Reconstruída ainda no século II a. C, Cartago tornou-se uma das
maiores cidades do Império, além de um centro de ensino gramatical ao qual se
deve muito do esplendor que a língua latina alcançou nos séculos II e III d. C.
É desse tempo que provavelmente data o Canon da Missa Romana.
Celeiro inesgotável
de cultura – também de trigo e azeitonas -, a Africa deu à nossa Civilização
a figura de Santo Agostinho (354-430), nascido na cidade de Tagaste, de pai
pagão e mãe cristã. Ele realizou seus estudos em Madaura e em Cartago, aonde
foi para completar sua formação. Uma juventude libertina lhe trouxe um filho, Santo
Adeodato, que posteriormente tornou-se um Bispo e um Santo.
Tendo sido
professor de Retórica em Cartago (374-383), mudou-se para Roma e, em seguida,
para Milão, onde deu aulas de Filosofia e tomou conhecimento da pessoa de Santo
Ambrósio, Bispo daquela cidade, que o impressionou com sua oratória.
Da vida licenciosa,
S. Agostinho passou ao Maniqueísmo (heresia gnóstica dos primeiros séculos),
mas em Milão converteu-se definitivamente à ortodoxia católica, batizado pelas
mãos de Santo Ambrósio (387).
De retorno à
África, fundou uma comunidade religiosa, mas logo foi chamado a assumir o múnus
episcopal (391), recebendo as Ordens e sucedendo a Valério no governo da Igreja
em Hipona (395), onde faleceu no ano 430, a poucos dias da invasão Vândala. Até
o seu último dia de vida, não cessou de encorajar a cidade à luta e resistência
ao invasor bárbaro.
Santo
Agostinho viveu numa época crucial da História Ocidental, quando uma sucessão
de fatos produziu turbulências e rupturas que imprimiram, na alma de muitos, a
percepção de que este mundo é permeado de mudanças e incertezas: o nascimento do Cristianismo, o choque das Heresias, as Invasões Bárbaras; tudo isso influenciou
o pensamento e a obra de Santo Agostinho, e, por causa dele, todo o pensamento
da Idade Média.
Assim como a
Síntese Tomista haveria de marcar o século XIII, durante os primeiros sete
séculos do que se chama Idade Média, foi a Síntese Agostiniana, essa enorme
obra de uma vida, que marcou a Filosofia e a Teologia do mundo cristão latino.
A obra que
nos serve de referência para a compreensão do sentido histórico dos medievais
é, certamente, a Cidade de Deus (De Civitate Dei). Seus mais de
quinhentos exemplares medievais ainda intactos – alguns datados do século VI - são
a prova de sua ampla repercussão. Segundo Eginardo (em De Vita Caroli),
era a obra favorita de Carlos Magno, que freqüentemente mandava ler à mesa, durante
suas refeições.
Foi redigida
ao longo de treze anos (413-426), iniciada a pedido de Marcelino, Tribuno Imperial,
de quem Santo Agostinho era amigo, e sua finalidade era dupla: 1) Responder aos
Pagãos, que atribuíam ao Cristianismo a fraqueza do Império Romano, com a
conseqüente pilhagem de Roma pelos Visigodos (410), fato que escandalizou o
mundo da época; 2) Situar os acontecimentos da História no Plano Providencial e
sobrenatural, julgando os fatos à luz do fim último de tudo.
Nela Santo
Agostinho expõe muito de sua teologia, fazendo longas digressões onde se pode
ver a síntese doutrinária agostiniana, que aborda desde sutilezas concernentes
à natureza de Deus até exegese dos Livros Sagrados.
A Primeira
parte corresponde ao primeiro objetivo, e por isso é mais polêmica, abrangendo
os Livros I a X; a Segunda Parte traz a visão teológica da História, mostrando
o nascimento, desenvolvimento e fim das Duas Cidades: A Cidade de Deus e a
Cidade dos Homens.
Para Santo
Agostinho, o tempo surgiu com o mundo criado, e a história do gênero humano começou
com Adão: por causa do pecado, surgiu a Cidade dos Homens, aquela que tem por
finalidade a si mesma e as coisas deste mundo; os justos formaram a Cidade de
Deus, que vive neste mundo sem pertencer a ele, tendo por finalidade o Céu.
Dois Amores fundaram duas cidades, o amor a Deus e o amor ao Mundo (Cidade de
Deus, Livro XIV, 28); a fundação de ambas remonta à Queda dos Anjos, quando
os que amaram a Deus foram confirmados e os que se rebelaram tornaram-se
demônios e foram para o inferno. Ambas as cidades existem na Eternidade e no
Tempo, através dos homens, justos e ímpios. A Cidade dos Homens cresce por geração,
ao passo que a Cidade de Deus cresce por regeneração: note-se que a
palavra usada para cidade é Civitas, que tem sentido de associação de
pessoas, sem limites geográficos – diferente da Urbs.
Havia uma
Cidade de Deus no princípio, e continuará a existir enquanto dez justos
habitarem a Terra. Tal fato foi esquecido por muitos que aderiram a um certo “Agostinismo
Político”, pelo qual a Cidade de Deus seria construída por César,
confundindo-se com uma espécie de Estado cristão. Em verdade, a Igreja, que
independe de um César, é a única que realmente prepara, no tempo, a Cidade de Deus que há de triunfar na Eternidade.
O desenvolvimento
de ambas as Cidades é a própria História, com a Cidade de Deus e a dos Homens
convivendo e entrelaçando-se, tal como o joio e o trigo, até serem
definitivamente separadas no Juízo Final, cada qual para o seu destino: Céu ou
Inferno.
Importante é
a noção de Idades do Mundo, lançada por Santo Agostinho e retomada por
escritores importantes como Beda e Isidoro. O Mundo teria Seis Idades, que equivaleriam
aos seis dias da criação: 1a) De Adão ao Dilúvio; 2ª) De Noé a Abraão; 3ª) De
Abraão a Davi; 4ª) De Davi ao Exílio; 5ª) Do Exílio a Cristo; 6ª) De Cristo ao
Juízo Final.
Para Santo
Agostinho, Jesus Cristo inaugura a Sexta Idade, na qual estamos e estaremos até
o Fim do Mundo, que inaugurará a Sétima Idade, que já será a Eternidade, a
perfeição. Nisso, o Doutor de Hipona se afasta de qualquer veleidade de
profecia ou utopia terrena, pois a perfeição não se alcançará neste Mundo,
tampouco se pode saber quando ela chegará: podemos compreender o que já
aconteceu, mas não está em nosso poder saber do futuro, exceto que um dia advirá,
das nuvens, o Filho do Homem.
“A primeira
idade, como o primeiro dia, conta-se de Adão ao Dilúvio, a segunda, do Dilúvio
a Abraão, apesar de não compreender duração igual à da primeira, e sim igual
número de gerações, a saber, dez. De Abraão a Cristo, o evangelista São Mateus
conta quatorze gerações, abrangidas por três idades: uma de Abraão a Davi,
outra, de Davi ao Cativeiro de Babilônia, e a terceira, do Cativeiro ao
nascimento temporal de Cristo. Já temos cinco. A sexta está transcorrendo
agora e não deve limitar-se a um número limitado de gerações, em razão destas
palavras: Não vos compete conhecer os tempos que o Pai tem reservados para seu
poder. Depois desta, Deus descansará como no sétimo dia e fará descansar em si
mesmo o sétimo dia, que seremos nós”[2] .
Beda retoma
a mesma noção e faz uma analogia com as seis idades do Homem, que é um Microcosmo
do universo, mas suas conclusões são idênticas às de Santo Agostinho[3].
Em “A Cidade
de Deus”, estão firmadas as bases para o senso cristão de história: 1) O Mundo
teve um início e terá um fim, com o Juízo Final, e essa duração é linear, como
é a vida humana, não existindo ciclos ou “eterno retorno”; 2) Deus dirige a História,
sempre em vista do seu fim, e nenhum império surge e nenhuma batalha é ganha sem
a Sua vontade; 3) Os eventos não são vistos sob a ótica de causa e efeito, mas da
sua finalidade.
“Assim
sendo, o poder de dar o império e o reino não atribuamos senão ao verdadeiro
Deus, que dá a felicidade no reino dos Céus somente aos piedosos, e o reino terrestre
a piedosos e ímpios, como lhe apraz a Ele, a quem nada apraz injustamente.
Mesmo quando tenhamos dito algo, na medida em que se nos descobriu, é muito
para nós e supera-nos de muito as forças o esquadrinhar os segredos dos homens
e formar juízo, de superficial exame, sobre os merecimentos dos reinos”[4].
A Cidade de
Deus é uma obra de História Universal, mas não como algo a abranger cada uma das
civilizações e povos que até então existiram. A Cidade de Deus se inicia com os
Anjos bons; o começo da História é o Gênesis e o final é o Dia do Juízo; Santo
Agostinho elenca todos os principais fatos do Antigo Testamento,
sincronizando-os com fatos da história profana, mas está longe de ser minucioso
nos detalhes: a idéia não é a de uma crônica detalhada, mas de fazer sentido da
História, que tem um começo e terá um fim, pelo que os eventos – bíblicos ou
não - se tornam compreensíveis à luz mesmo da finalidade a que se dirigem.
Para maior
detalhamento dos eventos históricos da Antigüidade Pagã e das sucessões de
Impérios, que absorveria muitos anos de uma vida já atribulada por trabalhos,
Santo Agostinho decidiu encarregar a tarefa a um amigo, o sacerdote lusitano
Paulo Orósio.
Paulo
Orósio (385-420)
Importante
escritor e apologeta cristão do século V, Paulo Orósio nasceu em Bracara
Augusta (atual Braga), na então Província Imperial da Hispania Tarraconensis.
Ele foi ordenado Presbítero em algum momento entre os anos 410/413, tendo logo
ido a África para encontrar-se com Santo Agostinho.
Orósio
levava ao Bispo de Hipona alguns questionamentos acerca da alma e sua origem, a
fim de esclarecer os erros do Priscilianismo, heresia ainda muito difundida na
Lusitânia e em partes da Espanha.
Com
recomendação de Santo Agostinho, Orósio viajou para a Terra Santa, onde conheceu
São Jerônimo, a quem ajudou nas disputas com os adeptos do Pelagianismo –
heresia que reduzia a ação da Graça e punha a salvação nos méritos humanos.
Retornando à
África no ano 416, Paulo Orósio pretendeu regressar a sua terra natal, mas, em
Minorca, chegaram-lhe notícias das devastações e danos que os Vândalos causavam
à Espanha. Decidiu voltar a Hipona e permanecer na companhia de Santo
Agostinho, que nesse tempo compunha a sua obra A Cidade de Deus, e que encomendou
a Orósio uma História Universal que lhe servisse de suplemento.
“Pediste-me
para responder à tagarelice vazia e à perversidade daqueles que, estranhos à
Cidade de Deus, são chamados pagãos (pagani), pois que vêm dos
campos (ex pagis) e das encruzilhadas dos distritos rurais, ou
gentios, por causa de sua sabedoria em assuntos terrenos. Embora essas pessoas
não busquem o futuro e, além disso, esqueçam ou nada saibam do passado, acusam
os tempos atuais de serem invulgarmente assolados por calamidades, atribuindo-as
ao fato de que os homens acreditam em Cristo e adoram a Deus, ao passo que os
ídolos são cada vez mais negligenciados. Pediste-me, portanto, para descobrir,
de todos os dados disponíveis em histórias e anais, quaisquer exemplos que as
eras passadas tenham proporcionado, dos fardos da guerra, estragos de doenças,
horrores da fome, terremotos terríveis, inundações extraordinárias, erupções de
fogo, trovoes e granizos (...)” (Historiarum, prefácio)
Orósio escreveu
o compêndio que, em toda a Idade Média, seria referência de historiografia para milhares de estudantes, monges e escritores: Beda e Isidoro, por exemplo,
utilizaram-no como fonte para os seus trabalhos; mais de um milênio depois, o
próprio Luís de Camões, em Os Lusíadas, deixa entrever nalguns versos
que bebeu da fonte de seu compatriota. Tão grande repercussão teve Historiarum
Adversus Paganos Libri Septem, que dele ainda sobrevivem 200 exemplares
medievais, um deles traduzido em Inglês Antigo (Old English) a
pedido do rei Santo Alfredo.
Compõe-se de
sete livros, que nos apresentam a Antigüidade pré-cristã como uma sucessão de
quatro grandes Impérios: Babilônia (Leste), Macedônia (Norte), Cartago (Sul) e
Roma (Oeste). O Primeiro Livro consiste em uma Geografia do mundo conhecido,
com detalhamento de países, rios e mares; os dois Livros seguintes mostram o
desenvolvimento de Babilônia, Macedônia e Cartago, além de Roma; o Quarto,
Quinto e o Sexto Livros falam da História de Roma até o nascimento de Cristo;
por fim, o Sétimo Livro fala da Era Cristã, com a sucessão de Imperadores Romanos.
A idéia de grandes
impérios sucedendo-se uns aos outros já estava presente no Livro de Daniel (Dan
7, 37-40)
"Senhor: tu que és o rei dos reis, a quem o Deus dos
céus deu realeza, poder, força e glória; a quem ele deu o domínio, onde quer
que habitem, sobre os homens, os animais terrestres e os pássaros do céu, tu és
a cabeça de ouro. Depois de ti surgirá um outro reino menor que o teu, depois
um terceiro reino, o de bronze, que dominará toda a terra. Um quarto reino será
forte como o ferro: do mesmo modo que o ferro esmaga e tritura tudo, da mesma
maneira ele esmagará e pulverizará todos os outros."
A passagem do
Livro de Daniel e os escritos de Orósio originaram a idéia de Translatio
Imperii, muito difundida na Idade Média, pelo que Deus sempre atribuiria
primazia a um Império, começando no Leste – Babilônios - e terminando no Oeste,
onde o último Império nasceria na última Era do Mundo. Seria um simbolismo da
duração do dia, quando o sol nasce no Leste e tem seu ocaso no Oeste. E –
comentário meu - mesmo um simbolismo dos analemas solares, em que o Sol segue
seu curso de Leste a Oeste, e nesse curso varia a posição de Norte a Sul,
simbolizados - na obra de Orósio - por Macedônia e Cartago.
Para Orósio,
Roma era o último Império, aquele preparado pela Providência divina para que o
Filho de Deus nascesse no mundo tranqüilo da Pax Romana. Os Impérios
Cartaginês e Macedônio tinham ruído no sétimo século de suas respectivas
existências, mas Roma passara disso sem maiores incidentes e, quando o mundo
estava em paz, com as Portas de Jano fechadas, encarnou-se Deus.
“Naquele
tempo, no ano em que César, por disposição de Deus, estabeleceu firmemente a
paz, nasceu-nos Cristo” (Historiarum, Livro VI, 22).
Beda,
baseando-se em Orósio, adota um tom solene, que nos dá noção da grandiosidade
do evento que foi a Encarnação do Verbo:
“No
quadragésimo segundo ano de César Augusto, no vigésimo sétimo ano da morte de
Cleópatra e Antônio, quando o Egito foi feito província [romana], no terceiro
ano da centésima nonagésima terceira Olimpíada, no septecentésimo quinquagésimo
segundo ano da Fundação da Cidade [Roma], isto é, no ano em que os movimentos
dos povos estavam contidos e, por determinação Divina, César estabeleceu uma
genuína e sólida paz, Jesus Cristo, o Filho de Deus, abençoou a Sexta Era pela Sua
vinda” [5].
O objetivo
de Orósio era demonstrar que o mundo pré-cristão conhecera atribulações
similares àquelas pelas quais o Império Romano de seu tempo passava. Mas, para
ele, as desgraças e guerras do passado foram ainda piores, se comparadas com as
de seu tempo, pois os antigos não conheciam a Cristo, tampouco cultuavam o
verdadeiro Deus. Para Orósio, apesar de tudo, o mundo havia melhorado por causa
da Vinda de Cristo como homem. Até os bárbaros eram capazes de respeitar os
templos sagrados, por serem cristãos, como os Godos, ao passo que os Antigos
não conheceram limites nos abusos praticados contra os vencidos. Nisso, Orósio
retoma um dos argumentos de Santo Agostinho [6] .
“Alarico
[rei dos visigodos] apareceu perante uma Roma atônita, iniciou um cerco,
espalhou caos e adentrou a Cidade. Antes, porém, ele deu ordens para que todos
aqueles que se refugiassem em lugares sagrados, especialmente nas basílicas dos
Santos Apóstolos Pedro e Paulo, fossem tidos como invioláveis: permitiu que
seus homens saqueassem o quanto quisessem, desde que não causassem mortandade (...)
Eles [os visigodos] tinha, claro destruído prédios, mas mesmo os seus incêndios
não foram tão grandes e devastadores quanto os que grassaram a Cidade em seu septuacentésimo
ano. Ademais, recordo-me da conflagração produzida por Nero, seu próprio Imperador,
e vejo que os incêndios causados por esses últimos invasores nem se comparam,
em danos, àqueles acesos pela leviandade de seu antigo Imperador. Nem preciso
comparar esta recente invasão com a outrora conquista Gaulesa, em que os
bárbaros, após pilharem e queimarem toda a cidade, ainda acamparam sobre suas
ruínas por um ano inteiro” [7].
Além disso,
o mundo mediterrâneo estava pacificado, não mais dividido em Cidades-Estado beligerantes:
“A vastidão
do Leste, as extensões do Norte, as grandes planícies do Sul, e os maiores e
mais seguros povoados das grandes ilhas, todos têm a mesma lei e nacionalidade
que eu, pois para lá vou como Romano e Cristão, e sou recebido por outros Cristãos
Romanos. Eu não receio o Deus de meu anfitrião, tampouco temo que sua religião fará
com que me matem; nem me causa angústia que as leis de meu anfitrião tudo lhe
permitam e a mim nada, pois um só Deus estabeleceu a unidade deste Império nos
dias em que lhe aprouve fazer-se conhecido, e por isso é amado e reverenciado
por todos” [8].
Contudo,
mesmo percebendo o mundo melhor, Orósio não tinha dúvidas de que, no futuro
reinado do Anticristo, as coisas haveriam de piorar e seriam tempos de dores e
tribulações. A própria vida dos cristãos sob os primeiros Imperadores não tinha sido fácil, e tempos assim certamente voltariam, pois enquanto houvesse pecado haveria discórdias e punições divinas [9].
Orósio morreu logo após a conclusão de sua obra, não tendo visto o ocaso do Império Romano do Ocidente, meio século depois. Roma não foi o último Império, mas muitos escritores medievais retomaram a sua noção de Translatio Imperii, como Otto de Freising (1114-1158): o cronista alemão utiliza as noções de Santo Agostinho e Paulo Orósio e, baseando-se no Livro de Daniel, reconhece a continuação do Império Romano em Bizâncio, depois nos Francos, nos Lombardos e, finalmente, no Sacro-Império Germânico. Talvez, na mentalidade dos Pensadores Medievais, Roma nunca tenha de fato terminado e só o faria no reinado do Anticristo, mas seria outro assunto e razão pela qual recomendo veementemente a leitura do seguinte artigo: ὁ κατέχων.
Conclusão
O que
diferenciou a concepção medieval de História daquela de outros períodos, foi
que o pensamento medieval fundou a Filosofia da História - ou que a chamem de Teologia. E isso, para Étienne Gilson, foi possível graças ao Cristianismo, com
a noção cristã de história, sua unificação no Plano Providencial.
Os Romanos
já tinham uma história linear e narrativa, como sucessão de fatos, e como algo
a ser meditado; mas, como observou Gilson, foi somente pela crença nas
Escrituras que os Medievais puderam saber como a História começou e como
terminaria – embora não soubessem quando -, abandonando a idéia de ciclos e “eterno
retorno”.
Sabendo como
o Mundo começou, como foi salvo, e como há de terminar, os homens da Idade
Média puderam ter um senso de mudança: assim como a Humanidade decaíra, também
podia progredir, pois ambas as Cidades se desenvolvem juntas; o mundo do
Dilúvio não era o mesmo de assírios e romanos; desses também diferiam os tempos
a que chamamos “Medievais”, afinal, quem poderia negar a influência no mundo causada
pela Encarnação, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo? E, quando Cristo
voltasse no fim dos tempos, tampouco estariam as coisas da mesma maneira,
afinal, Ele disse: “Quando o Filho do Homem voltar, encontrará Fé sobre a
terra”?
Não se afirme,
portanto, que a Idade Média não teve senso de mudança e de história, pois seus
principais pensadores constantemente viram o tempo como medida da mutação, como
um apartamento da Eternidade: só esta é imutável. As Eras e os Impérios que se
sucederam, presentes nas obras de Santo Agostinho, Orósio, Beda, etc., demonstram
o curso do tempo.
Quando a História
terminaria? Nem Santo Agostinho, nem Paulo Orósio, nem Beda ousaram dizer, e o
advento da perfeição não aconteceria antes do Juízo Final, da Sétima Idade,
aquela do descanso eterno.
Nem
progresso constante, nem declínio constante: a Idade Média nos deu a lente com que
contemplar os acontecimentos e os percursos das civilizações, que é a Cidade de
Deus e a dos Homens em seu caminhar, com a Providência a dirigir as coisas a
seu termo. Este termo é, para o Pensamento Medieval, o parâmetro para se julgar
o que já ocorreu. Não é parâmetro para a ação política, como julgam os
marxistas, pois o mundo futuro, para os medievais, é chave interpretativa, não
modificativa: o Mundo é um grande Poema que os homens leram até o presente, mas
cujas páginas seguintes são um mistério; e a chave para compreender o que já foi lido está no último Canto, único que nos é antecipado.
No mundo
moderno, em que o Positivismo, filho do Iluminismo, trouxe a idéia estúpida de
eterno progresso rumo à sociedade científica (positiva); em que o Marxismo
criou um arremedo de interpretação histórica para justificar a construção de um
infernal paraíso terrestre, é fato que o senso histórico dos Santos e Pensadores
medievais, modesto e realista, pode lançar a luz da humildade sobre a
megalomania hodierna. O homem moderno tem muito a aprender com a Idade Média.
Notas
[1] cf. GODDEN, Richard H. Medieval Sense of History, p. 206, no livro “Misconceptions About the Middle Ages” organizado por Stephen Harris e Bryon Grigsby, editora Routledge, Londres, 2008
[2] A Cidade de Deus, Livro XXII, 30, 5
[3] c.f. The Reckoning of Time, Chronica Maioria, Liverpool University Press, p. 157
[4] A Cidade de Deus, Livro V, 22
[5] The Reckoning of Time, Chronica Maioria, p. 193.
[6] Cf. A Cidade de Deus, Livro I
[7] Historiarum, Livro VII, 39
[8] Id, Livro VII, 2
[9] Id., Livro VI, 22
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