Está na moda, para os amantes de cultura pop como eu, a palavra multiverso. A série Loki, do MCU, abre um espaço para uma curiosidade legítima: será que existem realidades paralelas que representem possibilidades não-concretizadas? Primeiro, antes de ir à tese em si, é importante lembrar que em outros tempos não faria sentido algum chamar qualquer coisa relacionada à realidade por multiverso, mesmo porque já havia outra palavra para designar isso: universo. Não é óbvio? Talvez não, visto que hoje esta palavra tem um sentido diferente do clássico. Quando uma pessoa, formada por esta mentalidade, empregava o vocábulo universus, queria trazer à baila tudo o que tem existência no ser, tanto as coisas visíveis como as invisíveis, tanto a realidade material quanto a imaterial, tanto o mundo, quanto as leis da natureza, os anjos e a ordem sobrenatural, da qual faz parte Deus mesmo. O criador desta totalidade é Deus, como se diz no credo niceno-constatinopolitano: "Credo in unum Deum, patrem omnipotentem, factorem caeli et terrae, visibilium omnium et invisibilium..." [1]. A frase visibilium omnium et invisibilium significa o próprio universo, todas as coisas visíveis e invisíveis. Aqui o universo não é, como na visão moderna, o espaço sideral, as galáxias e os planetas. Estes representam somente uma parte da ordem natural, que não está restrita aos astros, mas à toda realidade visível, em cujo centro está o homem. O universo criado culmina na ordem sobrenatural, seu fim último, onde Deus é contemplado face-a-face (1 Cor 13, 12).
O Multiverso, dentro da cultura pop, é um conjunto que escapa um pouco desta noção de universus, pois é formado por uma infinidade de realidades paralelas que não tem existência real. Cada uma, na verdade, é ramificação construída a partir de uma decisão ou evento hipotéticos. É a famosa resposta para a pergunta "e se?". "E se eu tivesse ficado com o Fulano e não com o Beltrano?". A partir dessa escolha, abre-se uma linha do tempo de como as coisas seriam depois do tal evento. Toda essa teoria, sendo séria ou não, é um desdobramento de um problema filosófico antigo sobre o porquê de essa realidade existir e se Deus teria o poder de fazer as coisas diferentes do que são.
Na Idade Média, à preocupação clássica acerca dos princípios que regem o universo[2] é acrescentada a indagação sobre se Deus poderia ter criado um universo diferente do que criou. Podemos dizer que a Física moderna se inaugurou com a resposta dada por Duns Scot, filósofo medieval tardio, a essa pergunta. Longe de ter encerrado a discussão, na verdade o filósofo escocês só abriu outra que vai durar até os dias de hoje. Sua resposta é a seguinte: a realidade é assim por causa da vontade suprema de Deus que só faz o que é logicamente possível e não pode entrar em contradição com suas próprias leis. A realidade está ligada à vontade divina, que é preponderante "ante os conhecimentos de seu entendimento"[3] e Ele não quer outra coisa senão aquilo que já existe. Portanto os medievais, assim como os clássicos, nesse ponto, eram realistas e não davam muita possibilidade para especulações ou viagens sobre outras linhas do tempo. O universo é o que é e não pode ser de outro jeito.
Se, na ciência da física, na cosmologia clássica, não se abrem para nós muitos mundos a serem contemplados, na da história é um pouco diferente: é de profundo interesse observarmos a multiplicidade do real. Metaforicamente podemos dizer que, em cada período histórico, há multiversos, isto é, diversos mundos que podem ser analisados e comparados pelo estudioso. Um historiador, ou até mesmo um filólogo, deve transcender os dados históricos materiais e se inserir nos fenômenos sobre os quais ele se debruça, dando a sua interpretação deles. Não existe história sem o julgamento ou interpretação dos acontecimentos. Ao analisar determinado período histórico, ele pode imergir na cultura de um povo através de suas manifestações materiais para, depois disso, comparar com outras civilizações contemporâneas. Obviamente que, para isto, ele deve passar longo tempo tentando absorver os seus princípios à luz da própria época, sem trazer nenhuma opinião anacrônica. É mais um trabalho de compreensão que de juízo, como diz Marc Bloch[4]. O trabalho do filólogo é também filosófico, pois investiga um texto até chegar às suas causas primeiras, como é próprio da sabedoria[5], e depois emite suas interpretações a partir de comparações com outras civilizações. É o multiverso da história.
Pois bem, nessa perspectiva, lançaremos uma série de ensaios, no Medievalitas, sobre o multiverso da Idade Média, as diferentes civilizações que habitavam a Europa no período, comparando-as e vendo em que uma é superior à(s) outra(s). O objetivo final é mostrar ao leitor como o trabalho da Igreja de preservar o mundo romano nos conduziu a uma civilização pujante, diferente do destino de outras coetâneas, que não tiveram a mesma sorte e foram "podadas" ao longo da história. Os artigos se seguirão da seguinte maneira:
1) O Multiverso Medieval (Parte II): O Rio da História, O Imperium Universal e o Princípio de Autoridade.
2) O Multiverso Medieval (Parte Final): Carlos Magno, A Espada e A Cruz.
Sigamos no nosso barco de Dante e avancemos na travessia. Aguardo-te no próximo texto, leitor. Rumo ao multiverso!
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[1] Tradução: "Creio em um só Deus, Pai onipotente, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.
[2] "A natureza parece ter sido o objeto quase exclusivo das investigações daquelas primeiras gerações de sábios aos quais a tradição reservou o significativo título de 'físicos'" (GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia Tomista. 2013. p.299)
[3] GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2001. p. 744.
[4] BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Oficío do Historiador. p. 128
[5] "[...]pois consideramos que conhecemos perfeitamente quando conhecemos a causa primeira." (AQUINO, São Tomás de. Suma Contra os Gentios. III. Cap. 25)
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