Num 10, 10: “Tocareis as trombetas, oferecendo os holocaustos e as hóstias pacíficas, a fim de que o vosso Deus se lembre de vós”.
Não se pode
falar em Idade Média sem mencionar a sua rica literatura, desde poemas mais
antigos, oriundos das sagas nórdicas, até os poemas de um François Villon, os
romances de cavalaria do século XV, as Peças de Mistério inglesas, passando,
obviamente, pelas Canções de Gesta, pela lírica provençal, pelo Minnesang alemão. Mas não há
Medievalidade sem resgatar um poema que em si possui a medievalitas em seus próprios ossos.
A Canção de
Rolando (Chanson de Roland), poema épico
do século XI (seu manuscrito mais antigo data do século XII), tem em si os
elementos necessários para figurar entre os grandes épicos já escritos. Neste artigo,
trarei impressões pessoais que adquiri pela leitura repetida do Poema, bem como
por pesquisas e referências externas.
A matéria
para a obra é a Batalha de Roncesvalles (15/08/778), em que a retaguarda do
exército de Carlos Magno foi emboscada e dizimada quando passava por um
desfiladeiro dos Pirineus, no retorno de uma das campanhas na Espanha. Eginardo
(770-840), em sua obra De Vita Caroli
(c.a 830), fornece uma narrativa sóbria e objetiva – latina - daquela batalha
em que os bascos massacraram aqueles últimos homens do exército franco,
pilharam as carroças e sumiram na floresta, sob a escuridão da noite que caía.
Posteriormente,
a tradição imortalizou o acontecimento, transformou Rolando, duque da Marca da
Bretanha, em sobrinho de Carlos Magno; os bascos foram substituídos por
centenas de milhares de muçulmanos, um ardil vingativo foi introduzido e uma
batalha rápida virou uma guerra de civilizações.
A versão
escrita que nos chegou data do século XII e, no que parece ser um Colofon, lemos que um homem chamado
Turoldus a escreveu ou copiou. Escrita em francês antigo, chamado Langue d’Oïl, a canção é simples em sua
estrutura, possui 291 estrofes, chamadas
laisses, de tamanhos variáveis; seus versos são assonantes, não rimados.
As fórmulas
poéticas são simples, as descrições do ambiente ocupam poucos versos:
“Tresvait le jur, la noit
est aserie.”
“O dia se vai, a noite se lhe
segue”
Halt sunt li
pui e li val tenebrus,
Les roches
bises, les destreiz merveillus
“Altas são as Colinas, os vales escuros e fundos,
As rochas são cinzentas, e formidáveis os
desfiladeiros”
Como na
Ilíada, o autor descreve vários duelos entre guerreiros, e o esquema se repete
na maioria deles: após o desafio, os guerreiros cavalgam um em direção ao
outro, lanças e escudos são quebrados, espadas são cruzadas, um dos guerreiros
é morto e o vencedor lança-lhe um insulto. Diferentemente da Ilíada, as
fórmulas de desafio e insulto são breves, algo como “toma essa, pagão maldito!”
ou “o diabo o carregue!”, sem longos discursos, no máximo quatro versos. Não há
pilhagem das armas nem dos objetos pessoais do inimigo.
O autor,
tendo escrito oito séculos antes do advento do cinema, usa técnicas similares
às tomadas de filmes de guerra ou de batalhas épicas e que suprem muito bem a
ausência de recursos áudio-visuais. Por exemplo, entre vários combates
individuais, o autor intercala estrofes que cantam um quadro geral da batalha,
de modo a que os duelos não impeçam a audiência de vislumbrar o quebrar de milhares de lanças e escudos, ecoar
de gritos, soar de trombetas e cascos de cavalos, corpos caídos por toda parte:
La bataille est aduree endementres.
Franc e paien merveilus colps i
rendent.
Fierent li un, li altre se
defendent.
Tant hanste i ad e fraite e
sanglente,
Tant gunfanun rumpu e tant
enseigne!
Tant bon Franceis i perdent lor
juvente!
Ne reverrunt lor meres ne lor
femmes,
Enquanto isso a batalha se endurece,
Francos e pagãos desferem golpes
formidáveis,
Uns no ataque, outros na defesa,
Quantas lanças espalhadas, quebradas e
ensanguentadas!
Quantos estandartes e bandeiras
partidos!
Tantos francos ali morrem em juventude,
Não reverão suas mães nem suas esposas.
As
comparações, tão comuns também na Ilíada, aqui são simples e não ocupam mais do
que dois versos:
“Quant Rollant veit que la bataille serat,
Plus se fait fiers que leon ne leupart”
“Quando
Rolando percebe que batalha haverá,
Faz-se mais
feroz que leão ou leopardo”
Si cum li
cerfs s'en vait devant les chiens,
Devant
Rollant si s'en fuient paiens.
Assim como
os cervos fogem diante dos cães,
Diante de
Rolando fogem os pagãos.
O autor também sabe se valer de repetições, como as
três vezes em que Olivier roga a Rolando que soe a sua trombeta; ou as três
estrofes em que o herói, Rolando, morre. Essas repetições têm o efeito de
estacionar o poema e prolongar uma cena, ou criar tensão crescente que
desemboca numa conclusão emotiva. O autor também sabe fazer suspense e adiar o
desenrolar de certos eventos.
Apesar de ter sido considerada primitiva, a Canção
de Rolando não o é. Não tem o refinamento da poesia de Homero ou de Virgílio,
mas o seu autor não era um bárbaro, nem um semiletrado, nem um cristão mal
formado: era um homem com amplo domínio do seu idioma, das tradições orais, das
técnicas narrativas, da doutrina católica e da psicologia humana.
Resumo da Canção
O poema narra a batalha de Roncesvalles, nos
Pirineus, em que a retaguarda do exército de Carlos Magno é perfidamente
atacada pelos muçulmanos mancomunados com o traiçoeiro Conde Ganelon. A
narrativa começa com um resumo geral da campanha de Carlos na Espanha: após
sete anos, já nenhuma cidade lhe resiste, salvo Saragoça, governada pelo rei
Marsile, que não tem meios de resistir.
Acuado, Marsile convoca seus homens a conselho e um
deles, sênior, chamado Blacandrin, aconselha o rei a usar um estratagema:
enviar a Carlos mensageiros que lhe proponham a paz; dizer a Carlos que ele
deve voltar a França e que o rei Marsile o seguirá em algumas semanas,
encontrá-lo-á em Aix*, onde receberá o batismo e jurar-lhe-á fidelidade tal
como vassalo ao seu senhor, tendo Espanha como feudo. Para assegurar que Carlos
acredite em sua palavra, o rei Marsile oferecerá reféns dentre os filhos das
melhores famílias, garantias, e bastante ouro. Carlos Magno, aceitando, voltará
a França, mas Marsile não cumprirá sua palavra de ir até Aix para receber o
batismo e jurar lealdade. Os reféns serão executados, mas Saragoça quedará
livre do cerco e tempo será ganho.
Blacandrin vai ao acampamento de Carlos Magno e lhe
apresenta a proposta de seu rei. Carlos reúne seus Barões em conselho e lhes
faz saber a mensagem dos muçulmanos. De modo geral a proposta é bem recebida,
mas Rolando, sobrinho do Imperador, é contra: aquele rei muçulmano já quebrou
sua promessa uma vez, executando dois mensageiros que, pelas convenções
militares, eram invioláveis. O conde Ganelon, cunhado do Imperador e padrasto
de Rolando, acusa o jovem de ser imprudente e belicoso, de querer guerra pela
guerra; Ganelon é a favor de aceitar a proposta de paz do inimigo. Aconselhado
pelo cunhado e pelo velho e sábio Naïmon, Carlos aceita fazer a paz.
Na hora de decidir quem deve levar a resposta ao
rei Marsile, vários cavaleiros de alta estirpe se apresentam, mas Carlos os
impede de ir, afinal, a missão é perigosa: quem garante que o mensageiro não
será morto? Rolando propõe que seu padrasto, Ganelon, vá; afinal, ele defendeu
a proposta de paz. Mas Ganelon se enfurece com isso, pois acha que seu enteado,
ao propor o seu nome, quer a sua morte. Na verdade, o próprio Rolando já tinha
se oferecido para ir, mas foi rejeitado. Ganelon e Rolando brigam e aquele dá a
entender que logo terá sua vingança, ao que Rolando responde com uma gargalhada
incrédula.
Ganelon vai até os muçulmanos e, no caminho,
conversando com Blacandrin, emissário do rei Marsile, deixa no ar a sugestão de
que o melhor meio de parar o Imperador Carlos é matando o seu sobrinho,
Rolando. Afinal, Rolando é o seu campeão, comandante de sua vanguarda, seu
braço direito e, segundo Ganelon – e nisso ele mente -, o grande instigador de
guerras. Morto Rolando, os muçulmanos não terão que temer novas guerras com os
francos: haveria paz nos dois lados da fronteira.
Perante Marsile, Ganelon entrega uma falsa mensagem,
com termos humilhantes jamais ditados por Carlos: diz que, mesmo que Marsile se batize, Carlos lhe concederá apenas
metade da Espanha, ficando a outra metade para seu sobrinho, Rolando. O rei se
enfurece e por um momento quase mata Ganelon com um dardo, e Ganelon chega a
erguer sua espada para lutar. Contudo, Blacandrin faz o rei recobrar a sua
compostura, dizendo-lhe que aquele emissário franco tinha a solução para o seu
problema: que se matasse Rolando, e Carlos jamais teria ânimo para guerrear
novamente. Ganelon e Marsile entram em acordo: Ganelon vai garantir que, após a
partida do exército franco, Rolando ficará no comando da retaguarda mais afastada;
Marsile, então, lançará todo o seu exército contra aqueles poucos guerreiros
francos e os matará. Morto Rolando, será o fim das guerras, pois Carlos não
terá ânimo para lutar novamente.
O plano funciona: Ganelon avisa a Carlos que o rei
Marsile aceitou a sua proposta, e que o seguirá a Aix dentro de algumas
semanas, e que na festa de S. Miguel será batizado e receberá a Espanha em feudo;
o pérfido conde também sugere que Rolando comande a retaguarda, enquanto o
exército principal se retira e reganha a França.
Tudo ocorre como planejado, Rolando e os Doze Pares
de França (os doze maiores cavaleiros) ficam para trás com uma pequena força,
guardando os desfiladeiros enquanto o Imperador e seu exército marcham de volta
para casa.
Rolando e seus companheiros são atacados por um
exército gigantesco: Olivier, amigo de Rolando e um dos Doze Pares, três vezes
roga ao amigo que soe a Olifante - trombeta de marfim - para que Carlos Magno
retorne com seu exército e os salve. Rolando recusa, antes ansiando pela
batalha que virá. Atacados por cinco ondas seguidas de inimigos numericamente superiores,
os Doze Pares e seus cavaleiros sucumbem um a um: Rolando finalmente soa a sua
trombeta, mas já era tarde e Carlos não chegaria a tempo. Ele morre por último,
após afugentar seus inimigos; seus ferimentos são muitos e ele não lhes
resiste. Morre voltado para o território inimigo, em atitude de desafio; rende
sua alma a Deus, seu Senhor maior.
Carlos retorna, encontra sua retaguarda morta e quase
desfalece ao ver o corpo do sobrinho. As cenas seguintes são a perseguição aos
exércitos de Marsile e a vingança de Carlos. Em seguida, há uma nova invasão
muçulmana: desta vez, é o Emir Baligante, líder de todo o islã, que vem com um
enorme exército para conquistar o mundo cristão. A batalha final é travada,
Carlos e Baligante lutam em duelo e este último é morto.
De volta a Aix, assiste-se ao julgamento de
Ganelon, que é culpado de traição e executado. A cena final é a de um anjo
acordando Carlos, ordenando-lhe que se ponha em marcha imediatamente, pois um
rei cristão está cercado por tribos pagãs e precisa de socorro. Carlos obedece
ao anjo, pois é vassalo de Cristo, e recomeça suas guerras, embora cansado e
velho:
«Deus,» dist
li reis, «si penuse est ma vie!»
Pluret des oilz, sa barbe blanche tiret.
Ci falt la
geste que Turoldus declinet
“Deus”, diz o rei, “como é penosa a minha vida!”
Ele chora e
mexe em sua barba branca.
Esta é a gesta
que Turoldus recitou.
Assim termina a Canção, em passo cadente.
Carlos Magno
No Poema, Carlos Magno é um rei venerável, bicentenário, de longa barba
branca, uma figura hierática que abençoa os de sua casa, e a quem os anjos falam
e aparecem em sonhos. É rei de quase toda a Cristandade, incluindo até mesmo
Constantinopla e as Ilhas Britânicas, onde historicamente Carlos nunca esteve.
Justo, prudente, pio e bravo, sempre consultando os seus barões em
matéria grave, Carlos está longe de ser um rei absoluto, um déspota no estilo
oriental. Mesmo o julgamento final de Ganelon é submetido à assembléia dos
grandes; a execução de um homem não depende de um capricho do rei. A isso se
opõe a figura de Marsile, rei dos mouros, que reúne seus conselheiros apenas
para lhes comunicar suas decisões e a quem os nobres temem dirigir a palavra.
Marsile é um monarca à maneira oriental: despótico e caprichoso, ele governa deitado
em seu divã.
Carlos é o rei cristão por excelência se todos são seus vassalos, ele
por sua vez é vassalo de Cristo, a quem serve defendendo a Cristandade contra
os pagãos. Carlos também ama seus cavaleiros, nutre amizade com o duque Naïmon,
velho conselheiro, chora ao saber que os Doze Pares estão em perigo de morte,
desfalece quando vê o cadáver de seu sobrinho, precisando ser amparado por
quatro de seus Barões.
Não se deve pensar que essa imagem de um rei amparado por quatro cavaleiros
seja a de um homem fraco: os medievais expressavam suas emoções de um modo mais
natural; a idéia de que as grandes tragédias devem ser recebidas com um mero
semblante circunspecto é algo mais condizente com a moderna etiqueta vitoriana.
São Bernardo, em pleno sermão, chorou ao se lembrar de seu falecido irmão, e se
justificou dizendo que isso era natural ao homem, que é carne (ver o livro La Petite Vie de Saint Bernard, de
Pierre Riché, ed. Puf); na batalha de Mansurá, o rei São Luis, sem deixar de
lutar, chorou e derramou lágrimas copiosas ao saber que seu irmão tinha morrido
no ataque inicial (ver. La Vie de Saint
Louis, por Jean de Joinville). Não é de se espantar que, diante da perda de
uma figura filial, o Poema nos mostre um rei ancião, venerável, forte e
impávido, em atitude prostrada e lacrimosa.
Carlos não é fraco: a morte de seu sobrinho o entristece, mas não
destrói o seu ânimo de defender o mundo cristão. Ele se vinga da morte de
Rolando, como um bom Senhor devia vingar os seus vassalos, e assegura a vitória
total. Carlos luta, porque é vassalo de Deus.
Ganelon
Ganelon é um grande nobre, vassalo e cunhado de Carlos, e também
padrasto de Rolando, de quem não gosta. O desafeto é mútuo, como tradição no
folclore, entre padrasto (madrasta) e enteado (enteada). Não sabemos ao certo
as razões desse desafeto além do que aquilo que Ganelon diz: Rolando o
prejudicou no passado. Contudo, diante da personalidade invejosa e mentirosa de
Ganelon, não há sequer como saber se isso é verdade.
Ganelon não gosta de Rolando porque ele é impetuoso, aberto e temerário.
Ganelon é prudente, mas de prudência humana; é sutil e cheio de nuances,
melindroso e dramático, além de vingativo. Quando, no Conselho, estão a decidir
quem será o mensageiro junto ao inimigo, Carlos veta a ida de vários nobres,
mas não a de Ganelon, fazendo com que este se julgue menos dileto do que outros.
Quando Rolando sugere que Ganelon seja o mensageiro, ele se enfurece e
acusa o enteado de desejar-lhe a morte, o que não é verdade, pois não é da
natureza do herói usar de sutilezas e de indiretas para atacar um inimigo.
Rolando se ofereceu para ir, mas foi recusado. Dorothy Sayers, em sua
introdução à Canção de Rolando editada pela Penguin (1957), observa, quanto à
personalidade de Ganelon, que no século XI o autor do Poema já descrevia o tipo
de homem que a psiquiatria moderna diagnosticaria como “paranoico”.
Ganelon afirma que algo ruim vai lhe acontecer e fala como se já
estivesse marcado para a morte. Perante o Conselho ele é dramático e pleno de
piedade por si, porém virando-se para Rolando, em segredo lhe revela que junto
ao inimigo ele não deixará de fazer um ardil por que tenha a sua vingança.
Rolando cai na gargalhada, pois em sua simplicidade não imagina que Ganelon lhe
vote tanto ódio que seja capaz de trair os cristãos apenas para se vingar.
Ao partir, Ganelon dispensa seus cavaleiros: não quer que ninguém o
acompanhe em sua missão, pois se houver risco, ele prefere morrer sozinho a
sacrificar bons homens com ele. Nessa passagem, perguntamo-nos se em verdade
não há algo bom em Ganelon, pois ele parece se preocupar com seus homens. Ou
acaso ele deseja partir sozinho para que não haja testemunhas de sua conspiração?
Ele disse a Rolando que armaria uma trama mortal junto com o inimigo, mas não
foi levado a sério. Agora, ao dispensar seus acompanhantes, parece que Ganelon
tem um plano em mente, que vai se revelar aos poucos, à medida que, a caminho
de Saragoça, vai conversando com Blacandrin. Ao chegar diante de Marsile,
Ganelon já está decidido a trair para se vingar: ele planta na mente dos mouros
a idéia de que a única causa de Carlos ir à guerra é seu sobrinho, Rolando, e
que, morto este, haverá paz, pois Carlos não mais terá ânimo para lutar. Ele entrega
a Marsile uma falsa mensagem de Carlos, contendo termos extremamente
humilhantes que nunca foram ditados pelo Imperador: isso provoca a fúria de
Marsile e destrói qualquer possibilidade de paz, além de convencer os pagãos de
que sua única salvação seria aderirem ao plano de Ganelon.
Ganelon é sutil, frio e alto apostador, pois sua manobra é arriscada e
quase causa a sua morte. Mas seu plano dá certo: os mouros servirão ao seu
propósito. Em verdade, Ganelon não compactua com o inimigo por nutrir-lhe
amizade, pelo contrário, os mouros, ao lhe darem ouro e outros objetos de
valor, não sabem que estão sendo manipulados e que aquele homem não quer seus
presentes, mas apenas usá-los para a sua vingança pessoal. A morte de Rolando
não porá fim às guerras, Carlos não perderá o ânimo de lutar, e um dos
resultados será a destruição dos mouros. Rolando tampouco conhece as intenções
ocultas do padrasto, não imaginando que ele o odeie tanto que seja capaz de
cometer traição para se vingar: mesmo quando Rolando se dá conta de que foi
traído por Ganelon, ele não concebe um motivo mais profundo do que o ganho de
ouro.
Mas Ganelon tinha um propósito oculto, que só ele mesmo conhece. Os
mouros não o conhecem, Rolando tampouco, nem mesmo Carlos; ao leitor é dado
saber que Ganelon manipula todos como quem mexe peças de um xadrez, e que sua
motivação não é material, mas puramente espiritual: ódio e inveja. Isso faz de
Ganelon um personagem formidável, um dos maiores vilões que já surgiram na
literatura, um homem cheio de nuances e de sutilezas, melindroso e dramático, uma
figura diabólica sob certos aspectos.
Rolando
Jovem, forte e atrevido ao ponto da temeridade, orgulhoso, Rolando tem
uma natureza boa e leal – leal a Deus, ao rei e aos seus companheiros de armas.
Possui mesmo uma inocência infantil.
Ao contrário de Ganelon, Rolando não é sutil nem complexo. Jamais
atacaria à traição, muito menos usando terceiros. Simples como é, Rolando não
compreende a profundidade do ódio que o padrasto lhe vota. Mesmo quando o
próprio Ganelon lhe diz que se vingará, Rolando explode em gargalhadas, não o
levando a sério. Mesmo quando seu amigo, Olivier, cogita que Ganelon os tenha
traído, Rolando o repreende e demonstra algum respeito por seu padrasto.
Somente em meio à batalha Rolando percebe que realmente foi traído, mas não
imagina motivo mais profundo do que o ganho material.
Rolando tem as características do herói épico, tal como Siegfried e
Aquiles. Aquiles e Rolando têm semelhanças: ambos são os melhores guerreiros de
seus exércitos, têm querelas pessoais, por seus atos põem em risco suas
campanhas militares. Porém, Rolando tem uma personalidade mais agradável do que
a de Aquiles: este abandonou seu povo por causa de um butim e de um melindre
pessoal, e teria sido capaz de assistir à debacle dos aqueus. Rolando, ao se
recusar a soar a trombeta pedindo ajuda, põe seus homens a perder por excesso
de confiança, por que seu nome e o da Douce
France não fossem desprezados. Mas Rolando nunca abandonaria os seus, e
nunca o fez; guardou sua ferocidade para os inimigos e um olhar doce para os
seus companheiros, mostrando-lhes caridade até o fim.
A verdadeira natureza da atitude
de Rolando ainda será tratada adiante.
Olivier
Olivier é o amigo de Rolando. Todo herói épico tem um amigo, um
companheiro de armas. A história da amizade entre Rolando e Olivier não é
contada na Canção, que disso supõe um conhecimento prévio da audiência: ambos
se encontraram no cerco de Vienne, como adversários mediram-se em duelo até que
um anjo lhe apareceu ordenou que cessassem sua luta, pois as espadas de ambos
eram mais úteis contra os infiéis. Dali surgiu amizade entre os dois e Rolando
desposou Alda, a Loura, irmã de Olivier.
Rollant est
proz e Oliver est sage: Rolando é valente e Olivier é sábio. Olivier é um
grande cavaleiro, mas atento às necessidades mais práticas de um exército: está
pronto para a guerra, mas não faz questão de se arriscar quando não é
necessário. Sua sabedoria se mostra quando ele impede o amigo de levar mensagem
ao rei Marsile, pois sabia que ele se envolveria em problemas. É Oliver quem
sobe à colina para avaliar o tamanho real das forças inimigas e é por julgá-las
grandes demais que ele roga ao amigo que soe a sua trombeta, para que Carlos
volte com a força principal. Rolando não o escuta.
Olivier também tem seu orgulho e se irrita com o amigo em certo momento:
quando restam poucos, Rolando decide soar sua trombeta para pedir reforços e
pergunta a Olivier o que ele acha. Olivier responde, repetindo com um sarcasmo
sutil as razões que Rolando anteriormente lhe dera para não pedir reforços; a
cada pergunta de Rolando, Olivier vai se tornando mais irritado. Rolando,
percebendo que o amigo estava bravo, pergunta-lhe por que, ao que Olivier, em
sua explosão momentânea de raiva, lhe atira à face a responsabilidade por
aquilo que em sua visão era um desastre militar. É algo como: “eu bem avisei!,
e agora que o estrago está feito decides pedir ajuda!?”. Olivier preza a
sensatez e não faz questão de morrer desnecessariamente:
«(...) Cumpainz, vos le feïstes,
Kar vasselage par sens nen est folie;
Mielz valt mesure que ne fait estultie.
Franceis sunt morz par vostre legerie.
(...) Companheiro,
vós o fizestes,
Porque
lealdade não significa loucura,
Mais vale
prudência do que temeridade,
Franceses são
mortos por vossa leviandade.
Neste
momento a intervenção do Arcebispo Turpin apazigua as coisas.
Arcebispo
Turpin
Baseado numa figura histórica, Turpinus, Arcebispo de Reims, que viveu no século VIII. Contemporâneo de Carlos Magno, não foi, contudo, membro de sua cavalaria, embora Bispos guerreiros não tenham faltado ao longo da Idade Média.
Turpin
aparece em várias canções de gesta do Ciclo de Carlos Magno. É um
bispo-cavaleiro, vassalo de Carlos, um dos Doze Pares, que luta pessoalmente no
campo de batalha, manuseando seu báculo (cajado episcopal) e sua espada –
chamada Almace.
É sempre uma figura simpática, valente e sensata e, sobretudo, um cristão de grande caridade, atento às obras de misericórdia corporais e espirituais. É Turpin quem, antes da batalha, ordena aos cavaleiros que desmontem e faça confissão de seus pecados; é Turpin que, em certos momentos do combate, puxa o grito de guerra dos franceses: “montjoie!”, renovando sua coragem e lembrando que a morte lhes dará o Paraíso.
É Turpin
quem apazigua a ira de Olivier, mostrando-lhe a inutilidade de se irritar com o
amigo naquele momento grave, reconciliando dois grandes nobres – papel que a
Igreja exerceu durante toda a Idade Média. Por fim, Turpin é o penúltimo a
morrer: reserva suas últimas forças para rezar a absolvição sobre os cadáveres
e buscar água para o companheiro que estava tão ferido e moribundo quanto ele.
_________________________
Referências:
- The Song
of Roland. Ed. Penguin Books, 1971. Tradução inglesa e Introdução de Dorothy Sayers.
- Two Lives of Charlemagne, by Einhard and Notker the
Stammerer. Ed. Penguin Books, 1969.
- Oliphant
and Roland’s Sacrificial Death, por Robert Rois, artigo publicado em revista
Anthropoetics XVIII, número 2, primavera de 2013.
- Les textes
de la Chanson de Roland (manuscrit d’Oxford), ed. Raoul Mortier, 1940.
- História
da Literatura Ocidental, volume I, por Otto Maria Carpeaux, edições do Senado
Federal, 2008.
- Que é
Feudalismo? François Louis Ganshof. Editora Europa-América.
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