Carta de boas-vindas ou Breve Introdução ao tema "Idade Média Latina"

"[...] 'Poeta, rogo-te afinal,/por este Deus que tu não conheceste,/ que, livrando-me deste, e do outro mal/ Tu me conduzas lá onde disseste;'" (ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Inf., I, 130-133)

Caro leitor perdido na "selva escura" da internet,

Desejo-te boas vindas à página Medievalitas. Como o nome sugere, tratar-se-á sobre a Idade Média, mas te advirto desde já que o que ouvirás aqui não são aquelas curiosidades típicas sobre o período, como se estivesses lendo uma versão escrita de um documentário do History Channel ou de algum programa de TV de variedades. Têm lá o seu valor, mas sabemos que são criados para um público que não gosta de ler, desejoso por algo que possa estimular os olhos. Tal obra de entretenimento, porém, não sacia como se deve à potência intelectiva, para usar aqui um termo escolástico. Certamente esse não é o teu caso. Não esperes que te tratemos como um expectador circense, a quem se dá uma simples diversão numa noite de sábado e depois o manda para casa do mesmo jeito que chegou. O que propomos aqui é uma viagem. - Mas que tipo de viagem? - Bem, podemos falar que a nossa jornada não tem como destino um mundo maravilhoso de castelos e aldeias ou, muito menos, haverá nela uma máquina do tempo para voltar à Idade de Ouro perdida. O caminho pelo qual te conduziremos é outro muito mais profundo e inquietante. Conclamo-te, leitor, afinal a uma jornada para dentro de ti mesmo, em outras palavras, às tuas - e nossas - origens. Embarca em nossa nau sem demora, meu amigo. Vamos sair rapidamente dessa selva virtual em que a pantera das distrações está à espreita, procurando nos devorar[1]

Antes de empreendermos viagem, convém olhar para o nosso reflexo no espelho d'água. Ao contemplares tua imagem, leitor, poderás até ter uma vaga ideia de quem tu és, mas, sem conhecer tuas origens, não irás muito além deste reflexo difuso. Nossa página tem justamente a finalidade de dar a conhecer tuas origens. Podemos dizer que é uma aplicação modesta do famoso conselho temet nosce[2]  lido por Sócrates na entrada do oráculo de Delfos. Pois bem, à medida que fores chegando ao mundo latino medieval, destino de nossa travessia, mais a imagem no espelho ficará mais nítida. É neste período que a essência da sociedade ocidental toma forma: solidificam-se sua cultura, língua, política e religião. No espelho medieval, não aparece o mundo caótico que contemplamos hoje, fruto do liberalismo, onde cada um é artífice do seu próprio universo de crenças e valores. Por isso, foste confundido, logo no início, por aquela imagem difusa no espelho d'água. Ora, meu bom leitor, a sociedade liberal, a que estás acostumado, é uma anticivilização, trocando em miúdos, é um edifício construído para ruir, posto que o sujeito que mais se empenha em fabricar o próprio universo torna-se um tiranete deformado. Não vai demorar muito até que queira subjugar os outros e impor suas leis. Então deixa de lado tudo isto se queres, de fato, conhecer a ti mesmo. 

O que contemplamos no espelho da Idade Média latina? Isto: o reflexo de que somos filhos de uma civilização teocêntrica construída a partir do mundo romano. Apesar de estar se esfacelando, Roma sobrevive através da Igreja que a torna viva e presente de novo. Podemos dizer que somos latinos, na acepção original da palavra, visto que herdamos do mundo romano tanto sua língua, quanto o caráter austero e direto de suas leis e costumes como também, afinal, o princípio de autoridade, levado a todo mundo conhecido em virtude da própria universalidade deste povo. Roma Aeterna. Tudo isto é a matéria-prima de uma civilização que tem como causa formal o cristianismo. A própria Igreja é o artífice e o princípio de unidade desta nova Roma, substituindo o imperador e ensinando a buscar um novo fim último: não o imperium, que consiste em presidir temporalmente todos os povos, mas o reino de Deus, que ordena o mundo à ordem sobrenatural e lhe acrescenta todos as outras qualidades naturais num ato de puro amor[3]. Assumimos aqui uma perspectiva tradicional sobre a formação do Ocidente. A palavra tradição vem do latim 'trado' ou 'transdo', isto é, levar um objeto a alguém do outro lado de uma travessia, ou, na simplicidade do verbete do Dicionário Latino-Português, 'transmitir, entregar a outro'. É este o conceito chave para entendermos o trabalho da Igreja na Idade Média: foi-lhe entregue um corpo já em decomposição, partido em mil pedaços, porém com muitos princípios a se aproveitarem, e ela, para curá-lo, sopra-lhe uma alma nova, o Evangelho, e, de maneira lenta e gradual, une suas partes até se tornar um todo coeso e orgânico, cheio de vitalidade e beleza

Alguns autores como Ernst Curtius[4] - de quem vamos falar muito ainda - não veem distinção entre o mundo romano, o medieval e o moderno,  pois todos são facetas da mesma civilização europeia. Acrescentamos a esta ideia a de que  não houve somente uma permanência de uma civilização, mas uma evolução de uma sociedade que dá seus primeiros passos na cidade grega, passa pelo mundo latino e chega à cidade cristã, cume da sociedade ocidental. Dentro deste panorama, é mister que vejamos as outras épocas como um contínuo, por isso não adianta conhecer uma época sem estar a par das outras nem imergir na cultura ocidental sem obter cidadania em todos os tempos e dialogar com todos os autores que fazem parte desta tradição. Ser latino, ou romano, ou cristão é ser ocidental e dialogar com todas estas obras que geraram a nossa civilizaçãoDemarcações de períodos históricos só servem para transmitir a ideia de que os autores de antes e os de depois estão em mundos diferentes. No caso do ocidente, nada mais falso e deformador. Por isso, não há mais sentido, como fazem muitos estudiosos da academia hoje, em voltar a ser grego, ou romano, ou até medieval, ou isolar-se em qualquer outro período histórico sem dar conta de como tudo isto se transformou na civilização ocidental e adquiriu nova vitalidade ao longo do tempo. "Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos"[5]

Talvez dirás, meu caro leitor, que entro em contradição porque desqualifiquei as divisões didáticas e, ao mesmo tempo, adoto o termo Idade Média Latina - ele mesmo uma demarcação histórica - para me referir à região e época mencionadas. Pois bem, observa que este termo Idade Média Latina se refere mais a uma mentalidade que um limite histórico preciso. Vamos tratar, nesta página, sobretudo do espírito desta época, o qual subordinou os elementos greco-latinos à autoridade espiritual da Igreja Romana. Não existe Ocidente sem este espírito. Ademais, é necessário observar como esta mentalidade se constituiu como animadora de todos os avanços intelectuais e artísticos do período e propugnou a proliferação de santos em todas as esferas sociais. Nem o mundo romano nem a Igreja saíram perdendo neste processo. Por este motivo, compartilhamos não só a ideia de que foi aí que se estabeleceu, de uma vez para sempre, a essência da Civilização Ocidental mas também a de que os autores clássicos só são considerados assim por se vincularem com coerência a toda esta tradição que tomou sua forma final no medievo. Curtius coloca nesta tradição - que ele chama europeia, e nós, cristã-latina - um conjunto de autores que vai de Homero a Goethe[6]. Autores posteriores, dentre eles, Shakespeare, Camões, Cervantes, Dickens, Dostoiévski, etc, apesar de não pertencerem à idade média, compartilham com ela muitos traços essenciais, por exemplo, o domínio e imitação da estrutura e metrificação da língua latina - inclusive em línguas não-românicas como o inglês-, temas da filosofia clássica e medieval e sobretudo o forte cariz católico que aparece constantemente ou na primeira ou na segunda camada de suas obras. Ao completares essa viagem, bom leitor, ganharás a dignidade de civis romanus, e assim poderás transitar por todas as províncias do mundo ocidental e dialogar com todos os mestres da filosofia e literatura.       

Causa-nos certa tristeza ver que, nos espaços da grande mídia, os principais assuntos tratados sobre política, sociedade, arte e cultura são debatidos apenas sob a perspectiva da limitante dicotomia "direita-esquerda", a qual já era vista pelo escritor Gustavo Corção (1896-1978)[7] como um meio de obscurecimento e embotamento do debate e uma forma de esconder debaixo de uma censura psicológica o que realmente importa: a luta da revolução contra a civilização cristã. Esquerda-Direita não representa duas cosmovisões ou duas mentalidades, mas um "jogo falseado" visto que os dois têm a mesma origem histórica e intelectual, e há entre eles somente uma diferença de graus e de meios para se alcançar o mesmo fim: uma sociedade sem o princípio de autoridade. Diante do sumiço de vozes que tragam luzes a este conflito entre civilização e anticivilização no debate público, nossa página tem o papel de esclarecer sobre as origens de nossa civilização, que remonta ao período mencionado e cuja essência romana universal foi duramente atacada pela revolução que inaugurou o jogo E-D. Faz parte do nosso escopo trazer à baila fontes históricas pertencentes à literatura latina medieval e comentários de grandes autores sobre a formação da cristandade ocidental. Em suma, encontrarás, leitor, em nossas publicações e podcasts os seguintes conteúdos:

  1. Uma visão histórica amparada nas obras clássicas de Ernst Curtius, Henri Pirènne, Calderón Bouchet, Otto Maria Carpeaux, Johann Huizinga, dentre outros, cujos textos trazem ideias reveladoras sobre a manutenção da ordem romana pelos invasores bárbaros germânicos e a transmissão da cultura latina através da Idade Média, mostrando o quanto os autores clássicos europeus, mesmo após esse período, estão inseridos neste mundo latino medieval.
  2. Comentários acerca das fontes literárias e históricas do período que se estende desde o estabelecimento dos reinos germânicos na região do Império considerada România, onde predominavam a cultura romana e a língua latina, até o Renascimento no século XVI.
  3. Resenha de livros ou produções que abordem o assunto ou promovam debates acerca do tema.
  4. Crítica da mentalidade liberal vigente, de seus jogos falseados e visão social baseada na liberdade e independência do indivíduo, colocados em perspectiva comparativa com o antigo regime ou cristandade ocidental.

Espero, com este projeto, animar os que estão desejosos por esta jornada às terras da Idade Média Latina e proporcionar um conhecimento essencial sobre quem somos e nosso papel no mundo. Como termo da viagem, chegaremos à Cidade Cristã - tão maravilhosamente construída pela ação da Providência Divina -, cujo material cultural foi recebido dos romanos e subordinado ao espírito da Igreja Romana, elevando-se à maior dignidade entre todos os povos da terra. Nesta cidade, corria-se mais livremente o influxo da Graça a fim de se realizar, com maior facilidade, os fins para os quais o homem foi criado: conhecer e amar a Deus. Tal finalidade não vem sozinha, mas proporciona um bem a todos os participantes desta sociedade e suscita uma evolução civilizacional, deixando realizações grandiosas em todas as áreas humanas, sobretudo na política, economia, direito, ciência e artes. Portanto, em face a toda essa importância, é necessário defender esta cidade tão duramente atacada por incursões ao longo de 500 anos e resgatá-la do esquecimento a que foi relegada. Tal obra não será tão fácil. Mas eia!, Não esmoreças, caro leitor. Vamos atravessar esta "selva escura" e adentrar os portões da Cidade Cristã. Para isto, proponho-me exercer um papel de Virgílio e ajudar-te, como a um Dante, nesta travessia, a fim de chegarmos ao termo desta viagem. Isto se impõe a mim e a ti, caro leitor, mais como um dever que uma diversão. 

Não deve ser desculpa nossa incapacidade, pois o que importa é a vontade de realizá-lo. Com o resto Deus ajuda. Façamos como os medievais e confiemos em Deus, as outras coisas serão acrescentadas em seguida. Ademais, seja bem-vindo! Embarca depressa! 

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1- "Quase ao começo da subida aberta/ eis vi uma pantera, ágil, fremente,/ de pele marchetada, recoberta/ Do rosto sempre se me punha à frente,/ a tal ponto o caminho me impedindo/ que eu tinha que recuar constantemente." (ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Inf., I, 31-36)  

2- Uma das traduções latinas do grego gnothi seauton ("Conhece a ti mesmo").

3- "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo." (BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. 75. ed. Embu das Artes. Editora Ave Maria, 2008. 1291 p.)

4- CURTIUS, Ernst. Literatura Européia e Idade Média Latina. 1. ed. Rio de Janeiro. Instituto Nacional do Livro. 1957.

5- op. cit., p. 1292.

6- "Só verá a literatura europeia como um todo, quem conquista o direito da cidadania em todas as suas épocas, de Homero a Goethe." (op. cit. p.13)

7- CORÇÃO, Gustavo. O século do nada. 3. ed. Campinas, SP. Vide Editorial. 2020, p. 117-121: "O jogo E-D foi um jogo falseado e falseador".

            


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