DANTE E A TRADIÇÃO CLÁSSICA


Dante. Afresco de Luca Signorelli, na capela de São Brizio, Orvieto (c. 1499)

No dia 14 de setembro de 2021 comemorou-se o aniversário de 700 anos da morte de um dos mais proeminentes poetas da literatura ocidental: Dante Alighieri. Não é pouca coisa. Sete séculos são passados, e o nome e a obra de Dante não sofreram sequer o amarelecimento do tempo, mas permanecem vívidos, radiantes, ajudando a sustentar com sua força e perenidade a tradição literária.

Neste breve texto proponho-me a tratar da relação do poeta florentino com a tradição clássica, mais precisamente, greco-romana, mostrando como, através de seu maior e mais ambicioso poema, a Divina Comédia, ele reivindicou seu lugar na tradição, tornando-se um espelho dos grandes poetas da Antiguidade, de modo que contemplá-lo é ver a própria tradição.

Brevíssimas notas sobre a vida de Dante

              Dante nasceu em Florença, na Itália, em algum dia entre meados de maio e meados de junho de 1265. Presume-se esse intervalo devido à alusão que ele próprio faz na Divina Comédia ao signo de Gêmeos, sob o qual teria nascido[1]. Reputado como il sommo poeta[2], Dante Alighieri é considerado o primeiro e – não é exagero dizer – o maior poeta da língua italiana, língua esta que ele, ao escrever nela seu poema, elevou ao mesmo patamar de sua ancestral, a latina. E isto quando o latim era a línguada alta literatura, da retórica, da filosofia etc.

              Sua família era prestigiada em Florença, e era politicamente engajada com os guelfos, facção política partidária do papado que se opunha aos gibelinos, partidários do Sacro Império Romano-Germânico. Dante cresceu na região de San Pier Maggore, perdeu sua mãe, Bella degli Abati, ainda na infância, e seu pai, Alighiero di Bellincione, rapidamente contraiu um novo matrimônio, dando ao menino mais dois irmãos, Francesco e Gaetana.

Em 1277, através de um arranjo do pai, Dante se casou com Gemma Donati, advinda de uma rica família de aristocratas, que lhe entregara um abastado dote. Mas o casal com apenas 12 anos (o que era considerado comum na época) só teria o casamento concretizado em 1285, quando Dante já havia terminado os estudos, e já não era mais um adolescente. Com Gemma, o poeta teve quatro filhos, entre os quais uma que tomara o hábito sob o nome de Irmã Beatriz.

Sobre sua educação, pouco se sabe. Todavia, é certo que ainda muito jovem estudou a poesia toscana[3], provavelmente ajudado por Brunetto Latini, poeta com quem Dante tinha estreito contato e que lhe instruíra, como ele próprio menciona no Canto XV do Inferno. A partir de então, despertava-se-lhe o interesse por outros poetas: menestréis, poetasprovençais e, principalmente, os poetas da Antiguidade Clássica latina, entre os quais Virgílio era seu grande mestre e modelo. A julgar pelas variadas referências da Divina Comédia, podemos dizer com certa segurança que ele conhecia bem as obras de Horácio, Ovídio, Cícero, Tito Lívio, Séneca, Plínio, o Velho e outros.

Il Dolce Stil Nuovo

Por volta de 1288, junto com Guido Cavalcanti, Guido Guinizelli, Gianni Alfani, Lapo Gianni, Cino da Pistoia, Dino Frescobaldi e, pouco depois, Brunetto Latini, Dante lança na Itália um movimento poético chamado de Dolce Stil Nuovo[4]. A expressão foi primeiramente utilizada por Dante, na Divina Comédia, mais precisamente no canto XXIV do Purgatório, ao evocar o encontro com o poeta florentino Bobagiunta da Lucca. Ali, o conterrâneo, ao reconhecer Dante como o introdutor das "novas rimas", contrapõem-nas com as da suaescola trovadoresca[5].

Ora, o Dolce Stil Nuovo apresenta, de fato, novidades tanto no conteúdo como na forma da poesia em relação à tradição trovadoresca. Entre essas novidades, pode-se elencar, concernentes ao conteúdo, três grandes ideias, ou tópoi:  o primeiro refere-se a uma nova concepção do amor, já não mais pautada pela vassalagem, tão característica da sociedade feudal, mas pelos princípios da gentileza, que se tornavam típicos de uma sociedade burguesa nas cidades italianas. Nesse sentido, concebe-se a gentileza como uma qualidade espiritual, nada tendo a ver com linhagem, mas com o caráter, e se expressa pela virtude individual, permitindo que o verdadeiro amor sejafruto apenas de corações puros e gentis.

O segundo tópos concebe um novo ideal de mulher amada. Diferentemente da dama da poesia trovadoresca, que era uma espécie de suserano em relação ao seu amante, movendo-o incondicionalmente ao seu serviço, a mulher do doce estilo novo é vista como uma espécie de anjo, capaz de provocar, com um simples olhar, um desejo de bondade, de perfeição moral, de gentileza e de elevação espiritual no homem.

O terceiro e último tópos diz respeito ao estado de espírito do enamorado que, por ter sempre em mente a beleza angelical da dama, busca constantemente o equilíbrio entre a suave alegria do coração e o medo de ser abandonado ou de se ver sem aquela graciosa figura.

Quanto aos aspectos formais do novo estilo, está presente um meticuloso refinamento, com formas mais enxutas. No que diz respeito ao tom, Dante define-o como "doce" e "suave", sendo, assim, um dever da poesia espalhardoçura, suavidade e graça. Os versos mais utilizados pelos poetas do novo estilo eram o sáfico (acentuado na 4ª, 8ª e 10ª sílaba) e o heroico (acentuado na 6ª e na 10ª sílaba). Havia ainda o que chamavam de hendecassílabo, isto é, o verso de onze sílabas. Conforme o método de escanção italiano, quando a última palavra era grave, considerava-se a sílaba postônica. Em relação aos tipos de poema, os mais cultivados foram o soneto, a canção, a sextina e as composições em tercetos e em oitavas.

As obras em que podemos encontrar, em sua forma mais límpida, o espírito do Dolce Stil Nuovo são a Vita Nuova[6], de Dante, os poemas Al cor gentil ripara sempre amore[7], de Guido Guinizelli e Donna mi prega, perch'io voglio dire...[8], de Guido Cavalcanti.

Beatrice

Ainda na juventude, Dante conheceu Beatrice Portinari, filha de Folco dei Portinari. Cria ele que a tivesse visto antes, ainda na infância, e teria fixado sua imagem na memória desde então. Tinha ele por volta de 9 anos, e ela, 8. Em todo caso, não há elementos biográficos suficientes para comprovar as informações.

Pela falta de evidências, é difícil afirmar com segurança no que consistiu essa tão grandiosa paixão, mas é certo que ela ocupa uma importância fulcral não apenas na sua obra, mas em toda a poesia italiana. Sob o signo desse amor, Dante marcou profundamente o Dolce Stil Nuovo e abriu caminho para um Petrarca, por exemplo, cujo amor por Laura, ainda que numa perspectiva diferente, aparece como a justificativa da sua poesia e da sua própria vida.

Em 1290, morre precocemente Beatrice, e Dante procura então se refugiar na filosofia e na Literatura Latina. Pelo Convívio, claramente percebemos a influência de De Consolatione Philosophiae, de Boécio, e De Amicitia, de Cícero. Tal refúgio o levou ao estudo da filosofia em escolas religiosas, como a dominicana de Santa Maria Novella[9]. Participou também nas disputas entre místicos e dialéticos, muito em voga nas academias de Florença, e que se centravam em torno das duas ordens religiosas mais relevantes do período: os franciscanos e os dominicanos.

 

Dante e o Mundo Greco-Romano

Mira colui con quella spada in mano,
Che vien dinanzi aí tre sí come sire:
Quelli è Omero, poeta sovrano” (IV, 86-88) 

Parece óbvio pensar na relação de Dante com o mundo grego antigo, afinal, as referências às personagens e à mitologia pululam na Divina Comédia. Mas, com boa vontade, olhemos dois singulares episódios do "Inferno" que podem evidenciar ainda mais fortemente a seiva helênica na alma do poetaflorentino: o primeiro é o encontro com Homero, e o segundo, com Ulisses e Diomedes. Desçamos então, meus caros leitores, em intelecto, ao limbo e àquele "profundo fosso doloroso" para visitarmos o que Dante nos legou do mundo clássico.

É no canto IV do “Inferno” que Dante tem uma das mais fabulosas experiências da literatura: o encontro com aquele quinteto de poetas que representam para ele e para todos nós as mais firmes pilastras de sustentação da tradição literáriaocidental: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e Virgílio, este último já vinha o acompanhando e, por isso, não está junto ao grupo. Destaca-se a figura de Homero, que Virgílio descreve como o poeta sovrano (poeta soberano), como nos versos da epígrafe acima. Homero vem à frente com uma espada na mão, como que a liderar a tradição, representada pelos outros poetas. Ora, é de Homero que, através de Virgílio, Dante recebe o influxo de toda a concepção da Divina Comédia, a sua odisseia rumo à glória celestial, à fama, à eternidade. Homero é sempre soberano em seu poema, e, por mais que ele, de sua soberania, venha saudar Virgílio, que se ausentara, dando a este o lugar de destaque junto a Dante, é ele o segnor de l’altissimo canto, o decano que, como um rio, transfere seus fluxos de ricas águas aos seus afluentes.  

O encontro com Homero e com os outros poetas representa então a coroação de Dante como poeta, sua definitiva inserção na tradição literária. Quando ele vê aquele magnânimo grupo, chefiado pelo poeta sovrano, Dante participa de um longo colóquio intermediado pelo seu mestre Virgílio, após o qual ele é recebido naquela maravilhosa comunidade como o "sexto entre tanto saber". Dante então, junto com aqueles cinco, formará o conjunto de colossais pilastras que sustentam o domo da literatura ocidental, e é a partir daí que ele, adentra o nobile castello da tradição, e vê as almas de Electra, Eneias, Heitor, Sócrates, Platão, Aristóteles etc. Também é a partir daí que os rumos de sua poesia, de sua "odisseia" serão traçados, pois recebeu definitivamente o aval dos mestres do passado.

Saltemos agora do canto IV para o XXVI: aqui nos deparamos com umas mais impressionantes, instigantes e inteligentes passagens da Divina Comédia em termos de técnica literária: o encontro de Dante com Ulisses e Diomedes. Ali o poeta florentino transforma os dois heróis em uma chama dupla[10], numa clara alusão a Homero, que diversas vezes usa a metáfora da luz (φώς - phós) para se referir aos grandes heróis.[11] Em seu encontro com o polymétis[12], Ulisses, vemos o ardente desejo de Dante em saber notícias dele e, assim como o poeta, nós leitores pedimos a Virgílio que nos ponha em contato com o sofrido herói para também sabermos sobre essas notícias. Em síntese, podemos dizer que temos neste episódio algo de essencial à Divina Comédia: a associação que Dante faz de Ulisses consigo mesmo, como um viajante rumo à glória. Seu desejo de falar com o herói é genuíno, e mistura-se ao seu anseio de compreender a vida, o mundo e a morte, e faz com que ele se torne, através de Virgílio, um exegeta de sua própria poesia.

Mesmo sem podermos afirmar que o poeta de Florença tenha lido diretamente os gregos, é impossível contestar que sua concepção de literatura e sua compreensão davida e da morte não passe por uma requintada formação clássica, além da evidente e sólida formação católica. Dante soube como nenhum outro em seu tempo captar a estética da poesia épica e reunir todos os elementos para dar suporte a sua própria aventura: desejou viajar e associou-se a Ulisses, utilizou-se de Virgílio como um espelho através do qual viu, admirou, reteve e ressignificou o passado, incorporando em sua alma de poeta as fontes cristalinas emanantes da cultura greco-romana.



[1] Cf. Divina Comédia, Canto XXII, v. 109.

[2] O sumo poeta.

[3] A poesia toscana desenvolveu-se na Scuola Poetica Siciliana, um grupo cultural da Sicília que ficara famoso na região da Toscana.

[4] Doce Estilo Novo.

[5] Em Portugal, houve certa confusão entre o dolce stil nuovo e o movimento petrarquista, devido a uma simplificação formal e conceitual. O soneto, introduzido em Portugal por Sá de Miranda, normalmente considerado como pertencente ao dolce stil nuovo, já era, portanto, produzido pela Escola Siciliana, na Itália, desde meados do século XIII.

[6] Vida Nova.

[7] “O amor sempre repara no coração gentil”.

[8] “A dama me pede, por isso que eu quero dizer...”

[9] Segundo algumas fontes biográficas, Dante era terciário dominicano.

[10] Ulisses e Diomedes são amigos próximos nos poemas homéricos.

[11] Cf. os versos 354 e 355 do canto I da Odisseia.

[12] Palavra grega que significa “de muitos artifícios”.



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