A TRADIÇÃO EM D. QUIXOTE: UMA CHAVE DE INTERPRETAÇÃO DA OBRA (PARTE I)


"Tão grande é a força da tradição que gerações inteiras sentiriam saudade daquilo que nunca viveram." (Chesterton)

O livro D. Quixote de La Mancha [1] é muito mais que um clássico, também muito mais que uma sátira bem humorada. É uma tratado sobre o homem e a Cristandade. Mas calma lá, fui com muita pressa à conclusão. Talvez seja o fato de viver num mundo acelerado, em que as pessoas não se detêm nem para escutar umas às outras. A famigerada opção do whatsapp de acelerar a reprodução dos áudios não me deixa mentir. Minha pressa me faz saltar da introdução à conclusão. Retomemos a ordem natural das coisas.

Começando pelo início -sem medo da redundância-, vê-se que a ordem romana medieval foi atacada primeiro pelo renascimento na cultura e pelo nominalismo em filosofia. Os dois proclamam a independência do homem dos parâmetros naturais da realidade. Um diz que o homem é o centro de tudo e nada acima dele merece determinar a sua conduta senão sua razão sozinha. O outro decreta a inexistência de qualquer natureza universal das coisas e torna o homem "livre" para, ele mesmo, impor ao objeto o que sua razão ditar. Estas duas investidas não conseguiram fazer um estrago tão grande na sociedade, porque o povo em si era católico e ainda tinha a Igreja como princípio de integração e unidade. É um fato interessante como a Igreja reuniu em si o poder universal do imperador romano e integrou todos os povos, latinos e germânicos, em uma unidade político-religiosa, isto fez que não houvesse, na sociedade ocidental, uma separação tão grande entre o pensamento da elite, representada pela nobreza, e do povo, pois ambos assistiam à mesma missa e possuíam a mesma fé. Assim a sociedade se preservou da perda de suas tradições. Tal integração foi invejada até por teóricos marxistas, como Antonio Gramsci, que desejavam copiar o modelo da Igreja, substituindo-a pelos intelectuais, jornalistas e professores universitários, o que fracassou atrozmente:

"Intrigava Gramsci que na Itália daqueles tempos qualquer caipira analfabeto se achasse capaz de pensar como algum professor da Universidade Gregoriana. Isso acontece, dizia Gramsci, porque a Igreja, como parte da sociedade civil, soube manter unidos os estratos mais altos e mais baixos." [2]

Não é preciso muito para ver que a categoria dos intelectuais hoje só se aparta do povo cada vez mais, pois não há mais o elemento cristão agregador.

Pois bem, não ia ser da noite para o dia que os renascentistas iriam esgaçar o tecido social para instaurar uma sociedade nova baseada na ideia de liberdade. O povo ainda continuava preso às suas tradições religiosas e políticas e o próprio terreno da arte encontrava no catolicismo muitos temas e valores a serem representados. Muitos artistas e literatos abarcaram os novos valores apenas parcialmente, naquilo que eles podiam oferecer de sólido e inteligente, e passaram a usá-los como pano de fundo de uma arte católica e tradicional. É o exemplo de Shakespeare, cuja catolicidade da obra é hoje inegável e se esconde sob o véu de um drama histórico ou familiar, que pode deixar o leitor mais desatento preso na simples observação do drama de um Regicídio, como em Macbeth, ou de o ciúme doentio, como em Otelo. Os grandes autores desta época, portanto, estavam ainda integrados à tradição latina da Idade Média, tal era a sua força no tecido social, e, por isso, quem não alcança o sentido católico da obra de autores tradicionais, profundamente ligados ainda à Igreja, como Shakespeare, não sairá da primeira camada de interpretação, aquela dos elementos mais exteriores da narrativa.

Otelo é uma personagem que representa o homem medieval. Cristão, apesar de mouro de nascença, e pleno das virtudes de um bom patriarca, deixa-se levar pelas tentações diabólicas de seu escudeiro Iago e se afoga nos vícios do ciúme e da intemperança. Eis o caminho da queda do homem virtuoso. O catolicismo do dramaturgo nos aponta para a verdadeira chave de entendimento de sua peça: tentação e queda. 

Pois bem, na esteira do "bardo inglês" vêm o espanhol Cervantes e seu cavaleiro, D. Quixote. Não é pouco o número de autores que, ao se debruçarem sobre a obra do cavaleiro espanhol, interpretaram-na como uma troça aos valores medievais. É evidente que há muita influência do romance picaresco e da visão humanista acerca das instituições medievais, porém o resgate da tradição e a exaltação de sua força são tão fortes que ordenam todos os elementos da narrativa. Numa obra, a parte se direciona ao todo, assim como, num castelo, as pedras servem para a composição do edifício. A finalidade de cada pedra é compor o todo. Da mesma forma se dá com um poema ou romance: os elementos linguísticos e narrativos se submetem à finalidade da obra. Numa leitura mais acurada, o leitor deve ir de camada em camada, ultrapassando os elementos mais evidentes da narrativa, para alcançar o cerne do poema e os valores que ele transmite. Tudo isto se encontra nas camadas mais profundas e não nas mais superficiais da obra. 

A narrativa do D. Quixote, na primeira camada, se divide em duas partes, porque se trata de duas viagens empreendidas pelo fidalgo, ao largar o cuidado de sua sobrinha e sua serva, para viver aventuras dignas dos romances de cavalaria que tanto admirava. As historias vão se sucedendo, mas há sempre no meio ou no final delas uma lição ou conselho, apontando aquilo que realmente importa ao homem: a salvação, que só vem pela fidelidade à Igreja Católica. O leitor deve sair da primeira camada da sátira para ir aos profundos da exaltação da Tradição. 

Na segunda parte do livro, há muito mais histórias com admoestações do próprio D. Quixote para uma vida espiritual mais elevada, mas nos deteremos aqui em um episódio especial da primeira parte. Nele há um curioso fato que expressa bem a finalidade da obra. Narra-se nada mais nada menos que a mais importante batalha da Cristandade do século XVI: A batalha de Lepanto. Foi em Lepanto que uma força conjunta de reinos católicos da época conseguiu barrar o avanço dos Turcos. Se essa força não houvesse sido vitoriosa, a Civilização Ocidental tomaria rumos totalmente diferentes. 

Ao encontrar, numa hospedaria, um ex-soldado cativo espanhol e sua esposa recém-convertida do islamismo, D. Quixote se interessa por sua história e pelos impressionantes relatos da batalha. O próprio Cervantes viveu uma história parecida em 1580 e esteve cativo em terra de mouros, defendendo a Espanha e a Cristandade. O episódio é certamente autobiográfico.

Quem me acompanha pelo instagram e pelos podcasts sabe o quanto aprecio a prosa como forma de escrita, por dar liberdade ao escritor e conseguir expressar com mais facilidade os sentimentos e fatos. De outra categoria, certamente mais elevada, é a poesia, mas é para poucos. Poucos são os que a dominam e conseguem submetê-la à sua criatividade. A prosa, para o escritor que aprecia a narrativa histórica e descritiva, pode servir de instrumento que confere arte a relatos nem sempre tão empolgantes. Peço que o leitor saboreie comigo o trecho a seguir repleto de significado para a Europa e a Igreja. Nele o cativo descreve o sucesso da batalha de Lepanto e a valentia em defender a Europa dos Turcos, muito mais numerosos e fortes. Um dia de felicidade para o mundo, porém um dia de tristeza para ele, de cuja captura não pôde escapar: 
"Digo, enfim, que me achei naquela felicíssima jornada, a cujo honroso cargo me elevou mais a minha boa sorte do que o meu merecimento. Naquele dia, tão ditoso para a cristandade, porque nele se desenganaram o mundo e todas as nações do erro em que estavam, crendo que os turcos eram invencíveis no mar, naquele dia, repito, em que se dobraram o orgulho e a soberba otomana, dentre tantos soldados venturosos que ali havia (porque mais ventura tiveram os cristãos que morreram do que os que ficaram vivos e vencedores), só eu fui infeliz, pois, em vez de obter uma coroa naval, como nos antigos séculos romanos[3], me vi, naquela noite que se seguiu a tão famoso dia, com cadeias nos pés e algemas nas mãos." [4]

Ele prossegue a história contando a forma como foi arrastado de lugar em lugar no mundo islâmico, como conheceu sua esposa, ainda quando era cativo, e, comunicando-se com ela à distância, pela janela do cativeiro, encantou-a e a fez converter-se à fé católica. Os dois armaram uma artimanha para conseguir fugir à Espanha. Assim como esse episódio, há inúmeros outros de bons exemplos e narrativas divertidas sobre as quais se sobressaem as virtudes de um bom homem e a Fé católica deixada por Cristo. Cervantes, apesar de humanista, utiliza-se sua técnica narrativa para exaltar a Deus e à religião tradicional. Portanto o humanismo nele, assim como em outros escritores do período, é apenas uma roupa que embeleza mais o conteúdo elevado e espiritual que oferecem ao leitor. É sobre este prisma que deve ser lido o romance, do contrário perder-se-á o aspecto mais profundo. A tradição é sempre viva, assim como um rio que recebe águas de outros afluentes e continua seu caminho, fortalecendo-se cada vez mais, mesmo longe de sua origem. Portanto sem a vivificação, no interior do leitor, do espírito da tradição a compreensão não vai se aprofundar. A palavra vai ser morta.

Finda-se aqui o primeiro de uma série de ensaios que apresentará comentários sobre episódios muito interessantes da obra D. Quixote de La Mancha. Serão colocados à luz os aspectos tradicionais da sociedade romana medieval e seu lugar de contraposição até mesmo à decadência da cavalaria e dos costumes da época. "Há muita razão em sua loucura". D. Quixote, apesar de sua excentricidade, é um valente defensor do Ocidente e da verdadeira cavalaria contra a enxurrada de impiedade inaugurada pela Renascença e levada a cabo pelo liberalismo posteriormente. A verdadeira Literatura Ocidental, ao longo dos séculos, só reforçou os valores cuja permanência veremos através das andanças de nosso cavaleiro, D. Quixote, e seu escudeiro, Sancho Pança. Espero-vos, amantes da Literatura, no próximo artigo.     

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[1] CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. D. Quixote de La Mancha. Volume 1-3. 2002. Ediouro: Rio de Janeiro. Trad. Almir de Andrade e Milton Amado.

[2] ROLDÁN, Luís. Reavivamento do Marxismo no Ocidente. In: Revista Permanência. Nº 294. 2019: Editora Permanência. p. 113.

[3] Uma coroa de ouro era dada àqueles marvilheiros que primeiro saltassem do navio inimigo e, mesmo sendo grande a chance de morrer, sobrevivessem.

[4] Op. Cit. P. 97

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