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Retrato de Carlos Magno por Albrecht Durer (1471-1528). O rei, com vestes sacerdotais, carrega a espada e cruz para apaziguar o multiverso. |
Nosso rio da história corre em direção a um grande mar. Esse grande mar não é um qualquer, é o mare nostrum, o Mediterrâneo. Ele é para a civilização romana como uma dádiva, assim como o era o Nilo para o Egito, nas palavras do historiador Heródoto. Pirenne[1] até o vê como ponto de união entre os dois impérios, o Ocidental e o Oriental. É por causa desse grande mar que se evitou que houvesse uma ruptura ainda maior em Roma, levando, assim, Constantinopla a continuar unida ao Ocidente. Daí se vê sua importância. É certamente um dos elementos sine qua non, pelo menos naquele momento, da manutenção do Imperium. O mediterrâneo, além de dar sustentação econômica ao Ocidente, possibilitou a circulação de pessoas e ideias. Perdê-lo seria colocar a própria civilização em apuros.
Por causa do Mediterrâneo, mesmo após o debacle de Roma, dividida entre mil povos germânicos[2], o espírito romano não caiu, permanecendo sob a égide de reis oriundos do norte. Por ser um elemento agregador do Imperium, os reis germânicos invasores, através do Mare Nostrum, comunicavam-se com o distante, e ainda forte, imperador de Constantinopla, e assumiram para si o papel de seus embaixadores no Ocidente. Nem sempre estes monarcas encarnavam, com perfeição, este espírito romano, mas o respeitavam de maneira profunda e até queriam restaurar a República -como muitas vezes era chamado o Império- na sua antiga forma, utilizando para isso a força gótica[3]. O discurso de Ataulfo (+415 d.C), rei dos visigodos, é bastante emblemático e mostra a submissão dos conquistadores ao espírito do conquistado:
“Desejei
inicialmente, com ardor, apagar o nome dos romanos e transformar o Império
Romano em império gótico. A România, como dizem vulgarmente, teria se tornado
Gothia. [...]. Ora, sem leis não existe Estado [respublica]. Portanto,
tomei o partido de aspirar à glória de restaurar em sua integridade e fazer crescer
o nome romano graças à força gótica.” (OSÓRIO, 1882, p. 560 apud PIRENNE, 2010, p. 25)
Esta vai ser a intenção dos reis germânicos instalados na România: restaurar o antigo esplendor de Roma através do ímpeto germânico.
A partir dessas invasões, o que se vê é uma imensa comunidade de países formando-se ao redor da unidade cultural latina. Uma comunidade de mesma língua, educação e organização social. Eis a România. Ela não é um estado com limites concretos, mas uma entidade abstrata formada pelas regiões que se romanizaram e têm o latim como língua materna. Hoje a maior parte dessa região desenvolveu algum vernáculo derivado do latim, as chamadas línguas românicas. Acrescentam-se nela também o norte da África, que sofreu intensa romanização, que foi apagada pelos árabes, 4 séculos depois, e até a região da Britânia, de romanização tardia e fraca, mas que contém um caráter latino especial, sobre o qual podemos falar em outro artigo.
Roma não desaparece com as invasões germânicas. Sua autoridade imperial sobrevive, ad orientem, no imperador de Constantinopla, que funciona como um árbitro universal em questões políticas, conferindo, por delegação, essa mesma autoridade a seus embaixadores no Ocidente, os reis góticos, que governam, cada qual, sua região. Uma aliança tácita entre Constantinopla e reinos germânicos se forma para preservar o antigo equilíbrio da respublica, como menciona Ataulfo, e não haver um estado de anomia. Um fato que corrobora essa interpretação é a concessão do título de patrício, ou seja, de cidadão de alta estirpe romano a Odoacro (433-493 d.C), um general mercenário bárbaro, pelo imperador de Constantinopla, Zenão I (425-491d.C). Depois de Odoacro, a mesma dignidade foi entregue a Teodorico I (454-526 d.C), rei dos ostrogodos. Assim ambos governaram a Itália como os primeiros reis da região sob as insígnias do imperador do Oriente[4].
Roma não desaparece com as invasões germânicas. Sua autoridade imperial sobrevive, ad orientem, no imperador de Constantinopla, que funciona como um árbitro universal em questões políticas, conferindo, por delegação, essa mesma autoridade a seus embaixadores no Ocidente, os reis góticos, que governam, cada qual, sua região. Uma aliança tácita entre Constantinopla e reinos germânicos se forma para preservar o antigo equilíbrio da respublica, como menciona Ataulfo, e não haver um estado de anomia. Um fato que corrobora essa interpretação é a concessão do título de patrício, ou seja, de cidadão de alta estirpe romano a Odoacro (433-493 d.C), um general mercenário bárbaro, pelo imperador de Constantinopla, Zenão I (425-491d.C). Depois de Odoacro, a mesma dignidade foi entregue a Teodorico I (454-526 d.C), rei dos ostrogodos. Assim ambos governaram a Itália como os primeiros reis da região sob as insígnias do imperador do Oriente[4].
Não deixa de ser interessante observar, em nosso exercício especulativo do multiverso, que tivessem dominado a România monarcas, senão profundos na intelectualidade como um Marco Aurélio, submissos a todo o tesouro abarcado pela romanidade. É evidente, e sutil ao mesmo tempo, a ação da Providência, ainda mais quando os mais fortes de todos esses invasores, Átila, desiste de seu intento e não saqueia Roma. Os hunos eram os únicos que perturbariam esse frágil equilíbrio, porque eles não eram, segundo os relatos[5], tão submissos à ordem latina quanto os outros povos. Neste episódio da história, temos mais uma vez um ponto interessante de aporia: certamente Átila, a quem nada sobrevivia por onde passava e colocava medo até nas tribos germânicas do norte, não cessaria seu caminho de destruição por simples capricho, ainda mais podendo conquistar a outrora gloriosa Roma. Em 452 d.C, São Leão Magno, o papa, antes que Átila invadisse a Itália, resolve ter com ele e, argumentando, faz que desista do seu intento. Ninguém sabe quais foram as palavras utilizadas pelo papa e se foram realmente elas que o fizeram desistir, porém é evidente que aí houve um sopro da Divina Providência, que, mais uma vez, evita o pior cenário possível e resguarda o estado e as leis. É acreditar nisso ou numa coincidência frequente que sempre evita que o pior aconteça, tanto na Grécia com as guerras médicas, quanto em Roma com as guerras púnicas, quanto posteriormente. Os ataques do Oriente ao Ocidente sempre são desfeitos sempre de maneira milagrosa e na situação mais desfavorável.
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Leão Magno indo em direção à Átila. Rafael Sânzio, Palácio do Vaticano. |
Dentre os reinos germânicos na România, o que mais se destaca, tanto pelo desenvolvimento quanto pelas intrigas palacianas e guerras intestinas, é o reino franco. Estabelecidos às margens do rio Reno, na fronteira entre a atual França e a Alemanha, os francos logo conquistaram o seu quinhão do antigo Império Romano do Ocidente e ficaram com a parte correspondente à Gália, a ilustre região que tanto trabalho deu a César. Nessa região, eles instalaram um reino bem mais organizado que seus vizinhos visigodos, um reino construído com base no Mediterrâneo, cheio de vilas e cidades ao estilo romano. Logo um feliz acontecimento com um de seus monarcas vem a mudar o destino de toda Europa: o batismo de seu rei, Clóvis, em 496 d.C. Clóvis se torna o primeiro monarca católico da Europa e estabelece com a Igreja de Roma uma relação mais próxima que com o distante imperador de Constantinopla, o que abre as portas de seu país ao catolicismo romano e o consequente combate às heresias da época pelos bispos e padres da Igreja em solo francês. Ademais, por causa desse ato, a Europa, sob a tutela da França, vai ficar protegida da influência grega de Constantinopla, consequentemente do cisma e das diversas heresias que ali eclodiram. É o surgimento da primeiro estado católico europeu e um passo importante na expansão da Igreja para o norte.
Tudo isso é apenas uma preparação para o estabelecimento da Cidade Cristã.
Na Gália, agora "Francia", governa a dinastia merovíngia de Clóvis, e a Igreja tem ampla influência, inclusive na educação e na política. Algumas cidades e vilas, por falta de uma nobreza bem instruída, são administradas por bispos, que possuíam a formação cultural e política necessária para a administração da máquina pública[5]. Não é preciso dizer de onde vem essa formação. Porém essa convivência entre os merovíngios e a Igreja não foi sempre tão harmoniosa ao longo desses dois séculos em que ficaram no poder, muito em virtude da própria desordem da corte Merovíngia, que vivia se envolvendo em intrigas palacianas, adultérios e assassinatos políticos.
A França, nessa época, era dividida entre duas divisões político-econômicas: A Nêustria e a Austrásia, sendo a primeira preponderante sobre a segunda. A Nêustria é a parte rica, ao sul, perto do mediterrâneo, e dele recebe toda sua opulência. É formada por cidades e vilas e mantém a organização social e os costumes mais ou menos no estilo romano. Predominam ainda espaços urbanos por ali e o comércio é a principal atividade econômica. Era nesta região que ficava o centro do reino da Francia. Pesados são os relatos feitos por Gregório de Tours, em sua Historia Francorum, sobre as intrigas palacianas na Nêustria. Fredegunda de Nêustria é um "belo" exemplar da decadência da corte merovíngia: além de ter sido amante do rei Quilperico I, mata a esposa do monarca e casa-se com ele. Por causa desse acontecimento, a Neustria entre em guerra civil com a Austrásia, a parte do norte, e ela, inteligente e cruel, infiltra-se no palácio do rei, Genserico I, irmão de seu marido, e o assassina, pondo fim à guerra. Talvez a peça da rainha, no xadrez, seja inspirada nas vilanias de Fredegunda, mas isso é só especulação minha, leitor. O fato é que a dinastia merovíngia já não conseguia se aguentar direito e não produzia estadista hábeis e justos.
A Austrásia, por outro lado, era a parte campesina e guerreira. Sua elite era bem educada, mas não era muito sofisticada, destacando-se pela seriedade e força no campo de batalha. Enquanto os reis merovíngios, que governavam a Francia, iam ficando cada vez mais depravados e preguiçosos, era necessária uma espécie de primeiro-ministro que cuidasse da administração do estado e deixasse os reis mais livres para aproveitarem os luxos. Esse chanceler avant la lettre era chamado Mordomo do Rei. Na parte da Austrásia, aparece, no rio da História, uma família que se destacava por sua bravura e passou a ter, por vocação, servir nessa função, a família carolíngia. Enquanto os reis merovíngios iam se afundando cada vez mais na depravação e no vício, os carolíngios, mordomos do rei, ganhavam cada vez mais espaço e notoriedade. Com o êxito na administração real e na defesa do território, os carolíngios naturalmente ascenderam ao poder.
Antes estavam nele de maneira mais simbólica, pois quem tinha a coroa era o monarca merovíngio. Depois da batalha de Poitiers, em 732 d.C, todo poder foi dado ao representante carolíngio, Carlos Martel, e ele já governava sem amarras, embora também sem a coroa. Pepino, o breve, seu filho, o sucede e ganha a coroa pelas mãos do papa Estevão II, recebendo também as dignidades romanas. Tudo isso ocorre sem resistência ou guerra civil e sacramenta a dinastia carolíngia no poder. Já era natural ao povo e à Igreja que eles assumissem o trono de fato.
Diante de todos esses acontecimentos, vemos que o multiverso medieval poderia ter seguido diversas linhas do tempo alternativas: ou 1) Estar sob o domínio dos bárbaros hunos ao invés dos germânicos; ou 2) A Francia ter continuado sob a tutela dos merovíngios, o que seria um desastre devido a seus vícios; e, em decorrência disso, 3) A Europa ter sido tomada totalmente pela espada muçulmana. Com um monarca carolíngio no poder, os ataques muçulmanos têm na França uma muralha que os impede de avançar e ficam apenas pela Península Ibérica, não sem uma consequência grave: o mediterrâneo é agora mouro. A coroa da Francia vai para o norte e precisa procurar outra base de sustentação político-econômica. Os mouros dominam completamente o Mare Nostrum e isso tem um simbolismo muito evidente: além de não haver mais condições de sustentar os luxos da elite ao sul, na Nêustria, inaugura-se uma nova época, cujo centro se desloca à Austrásia, no norte, e cuja atividade econômica principal é a agricultura. É um vislumbre de feudalismo. Toma-se um caminho mais austero e guerreiro para o multiverso.
Carlos Magno, sucessor e filho de Pepino, o Breve, é verdadeiro apaziguador da linha temporal. Ele o faz através de uma série de campanhas pela Europa inteira. Toma a decisão de abandonar o mediterrâneo e busca conquistar reinos mais ao norte, como os da Lombardia, Saxe e Baviera. Também ataca a Espanha e anexa a Catalunha. Tem uma série de embates com os mouros, cujas principais batalhas são narradas no poema épico Chanson de Roland, cuja análise minuciosa foi publicada esta semana na página. Consegue algumas vitórias, mas nada de muito expressivo e acaba desistindo de expulsá-los da Europa e retomar o Mediterrâneo. Seu caminho é ao norte.
Anexa tantos estados e reinos bárbaros que, no natal de 800 d.C, o papa Leão III, depois da conquista da Lombardia, coroa-o e o leva à aclamação popular, conferindo legitimamente o título de imperador, pois, pela lei de Constantinopla, o imperador poderia ser elevado ao trono dessa maneira. Recebe todas as dignidades romanas das mãos do papa e o povo vê nele ressurgir o imperium universale. Não é mais o Império Romano do Ocidente, mas o Sacro Império Romano-Germânico. O império universal é agora cristão. A Idade Média Latina continua, agora não mais nos antigos estados da România, mas numa mistura entre românicos e germânicos. Talvez Carlos Magno tenha finalmente realizado o sonho de Ataulfo, 4 séculos antes, de restaurar o Império Romano através da força gótica. O rio da História encontrou uma barragem e foi transladado.
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Carlos Magno coroado por Leão III em 800 d.C. Iluminura. |
Graças a toda essa conjuntura providencial, a civilização romana se preservou através da Igreja, que educou essa nova elite germânica nos fundamentos da fé e da cultura romana, e da força guerreira dos nortistas. Uma nova civilização romana, de mesma língua e cultura, mas com novos elementos surgiu. No final das contas, há uma união entre dois símbolos, que, como qualquer símbolo, invoca uma realidade muito mais complexa do que a simplicidade a que imediatamente o signo nos remete: a cruz romana e a espada germânica. Eles estão, um em cada mão, nas mãos do novo imperador, Carlos Magno e conduzirão o multiverso medieval à paz. A linha do tempo, ou o rio da história, como quiseres chamar, leitor, estabiliza-se na França e não encontrará mais perturbações até o século XIV, quando um novo humanismo nos retira do verão e nos traz o outono de uma nova crise. Uma crise na própria romanidade e civilização. Aproveitemos a tranquilidade da linha do tempo sagrada e encerremos o multiverso. Por enquanto...
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[1] - Henri Pirenne é um historiador francês cujo livro Maomé e Carlos Magno é ainda um clássico da historiografia e sobre cuja tese assentamos o pilar do medievalitas, a saber, a de que o fim do Império Romano do Ocidente não trouxe o fim do espírito romano, mas a permanência dele através dos reinos bárbaros recém-estabelecidos. Sobre o Mediterrâneo, o historiador faz o seguinte apontamento: "De todas as características dessa admirável construção humana que foi o Império Romano, a mais impressionante e também a mais essencial é seu caráter mediterrânico. O mar, em toda força do termo, é o Mare Nostrum, veículo de ideias, religiões e mercadorias." (PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno: O impacto do Islã sobre a civilização europeia. 2010. p. 17.)
[2] - Mil é uma hipérbole, porém é bom observar que foram diversos os povos germânicos que se apossaram do, já em profunda crise, Império Romano do Ocidente. Destes podemos destacar os visigodos na Hispânia, os Francos na Gália, Ostrogodos na Itália e Vândalos no norte da África.
[3] - A palavra gótico, que hoje tem diversos matizes muito além do significado original, vem da palavra godo, uma das tribos germânicas que invadiram a România. Gótico é, no primeiro momento, todo esse espírito selvagem, à parte da civilização, dos povos do norte, que, ao adentram em território romano, latinizam-se. É depois dessa latinização que a força gótica foi capaz de produzir uma Idade Média pujante e um estilo artístico sofisticado.
[4] - "Pois o imperador não desapareceu de direito. Nada cedeu em soberania. A velha ficção dos federados continua. E os novos afortunados reconhecem sua primazia." (op. cit., p. 31)
[5] - Prisco, um enviado do Imperador de Constantinopla, o descreve como nascido "para fazer as raças estremecerem e aterrorizar todas as nações" (Prisco apud Moczar, Dez datas que todo católico deveria conhecer. 2013. p.40)
[6] - Id., p. 49.
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