SÃO JERÔNIMO E A TRADUÇÃO MEDIEVAL

Lucas van Leyden. São Jerônimo. Tinta sobre papel, Museu de Arte e Arqueologia de Oxford, 1521. 
 

Embora pouco se fale a este respeito, a atividade de traduzir ocupa um importantíssimo papel na história da civilização. É através dela que inúmeras obras estrangeiras chegam aos diversos povos e passam a fazer parte do fundamento de sua formação, do seu patrimônio cultural e intelectual. Muitas obras, que poderiam já estar perdidas para sempre, sobrevivem e vão ganhando novo vigor a cada época e a cada tradução feita a partir dela. Pensemos, por exemplo, na Ilíada e na Odisseia, de Homero, tidas como as primeiras obras da literatura ocidental, compostas por volta do século VIII a.C. Sem as traduções para as diversas línguas vernáculas, quantos de nós conheceríamos a ira do Pelida Aquiles e os sofrimentos do astucioso Ulisses no seu retorno para casa? Será que as epopeias homéricas não estariam completamente esquecidas, ou mesmo perdidas, se não tivessem ganhado, ao longo desses quase trinta séculos, tantas traduções em tantas línguas diferentes? Conheceríamos, porventura, algo sobre as civilizações mais antigas, se não houvesse a preocupação de manter e traduzir ao longo do tempo as obras produzidas nesses períodos? O que seria do cânone literário e das ciências, por exemplo, se não fosse a atividade de tradução? O que saberíamos sobre os gregos e os romanos? Quem seriam para nós Dante, Cervantes, Milton, Shakespeare e tantos outros grandes escritores e poetas estrangeiros?

Tais perguntas só começam a surgir em nossa mente quando nos tornamos capazes de nos afastar da ideia afetada da inferioridade das traduções e pensamos de maneira mais profunda acerca dela, bem como do nobre papel dos tradutores que, conforme o crítico francês Valery Larbaud (1881-1957) acentua, realizam uma verdadeira obra de caridade, habilitando-nos a conhecer e a contemplar as verdades universais abrigadas pelas grandes obras estrangeiras, e que, por isso mesmo, importam não apenas para as línguas nas quais foram escritas, mas para toda a civilização. E se é quase impossível conceber um ocidente sem as grandes obras e os autores mencionados no parágrafo anterior, o que pensar então de toda a romanidade cristã, de toda a tradição ocidental sem o pleno conhecimento e o influxo do conteúdo das Sagradas Escrituras? Sim. Das Sagradas Escrituras! Mas por que teríamos que imaginar tal coisa? Ora, os textos bíblicos definitivos utilizados pela Santa Igreja assentam-se sobre uma tradução, a famosa Vulgata, empreendida durante anos à fio por ninguém menos que um dos quatro padres da Igreja Latina: São Jerônimo (c. 347-420). A ele é dado, justissimamente, o título de patrono dos tradutores: na terra, seu mais completo e perfeito modelo; no céu, seu poderoso padroeiro. Tal título, no entanto, não lhe é reputado somente por ter traduzido pura e simplesmente as Sagradas Escrituras para o latim, mas, sobretudo, por ter moldado toda a prática posterior de tradução no mundo ocidental e exercido sua forte influência nos estudos que, ao longo dos séculos, culminaram numa teoria da tradução.

Este breve ensaio não tem como propósito rastrear todos os estudos e práticas que tiveram por base o modelo tradutório de São Jerônimo, mas tão somente comentar como sua influência foi exercida nas práticas de tradução no áureo período da Idade Média. Para isso, situemos antes o nosso leitor acerca da marcante e gloriosa figura de São Jerônimo e das suas inigualáveis lições sobre a prática de tradução.

Um pouco da vida e da obra de São Jerônimo

Um crucifixo, um crânio e uma pedra... Apenas isso bastava a São Jerônimo para escrever. Em quantas representações artísticas não vemos um austero ancião cercado de compêndios de livros e irradiado pelo mistério sobrenatural emanante daqueles objetos? Se, por um acaso, não conhecêssemos a tradição cristã, diríamos certamente que tais representações mostravam um escritor; e se depois nos explicassem que se tratava de um santo católico, atribuiríamos certamente seu patrocínio aos homens de letras. Com toda razão e justiça faríamos isso, pois São Jerônimo, antes de tradutor, foi um homem de letras. Sua obra é como um monumento para o qual olhamos repetidas vezes sem nunca deixarmos de nos admirar, porque a grandeza de sua obra comunica ao nosso intelecto, e basta que leiamos brevemente alguns de seus prefácios aos livros da Vulgata, ou ainda algumas de suas cartas, para que imediatamente vejamos nele um verdadeiro mestre do pensamento e da linguagem.

Nascido em Estridão, fronteira entre a Dalmácia e a Panônia, por volta do ano 347, fez-se, contudo, visceralmente romano. Apesar de ter passado a segunda metade de sua vida – 35 anos – em Belém, sempre foi para Roma que ele viveu. Para Roma, sede dos anos mais agitados de sua adolescência e mais prósperos de sua vida adulta. Foi em Roma que ele exerceu seu ‘cardinalato’ como secretário do Papa Dâmaso, e onde fundou uma escola religioso-literária, que depois veio a ser uma família espiritual, composta dos mais excelentes cristãos e das mais pias e eruditas mulheres romanas, como Santa Paula, Santa Blesila e Santa Eustóquia. Quando se dirigiu a Belém numa espécie de santo exílio para nunca mais retornar vivo à Cidade Eterna, ainda assim, lá permaneceu presente por sua forte e gloriosa influência. Para lá dirigia incessantemente seu pensamento: seus escritos eram dirigidos a Roma, lidos, comentados e até mesmo atacados na capital católica. Quando, ao partir, exclama Babilônia! em referência a Roma, é ainda porque a ama e porque permanece romano, já que o termo, na época de São Jerônimo se confundia com “cristão” e, logo depois, com “católico”. Com efeito, a injúria proferida não é fruto da fúria de um derrotado pelos inimigos, mas da ira santa de um pai, de uma alma forte e santamente romana e, por isso mesmo, cristã. Foi, portanto, para as mentes e os ouvidos romanos, e depois para todo o ocidente latino, que ele empreendeu a maior e mais gloriosa obra de sua vida: a de tradutor das Sagradas Escrituras. Morreu em Belém, em 420, mas permaneceu tão fortemente romano, que Roma exigiu suas relíquias, e podemos nos aproximar de sua memória na Capela do Santo Sacramento da Basílica Liberiana sob a relíquia do Presépio, o pedaço de Belém na Cidade Eterna.

São Jerônimo teve influências clássicas, fruto da alta educação que recebeu em Roma. Tendo estudado retórica com o orador Vitorino e gramática com Donato, entrou em contato com a literatura clássica, e prendeu-se apaixonadamente nela. Só depois é que Cristo, esquecido nos devaneios da juventude, sobreveio em sua alma. No período de sua conversão, por volta do ano de 360, deliciava-se com visitas às catacumbas e começava a conhecer mais profundamente o tesouro da cristandade. Recebeu, enfim, o batismo e partiu para Trier, onde entrou em contato com a leitura dos exegetas latinos, que começaram a disputar sua atenção com os pagãos, especialmente os autores da época republicana e octaviana, de quem ele ainda não se desvencilhara, e por quem nutria uma apaixonada preferência. Na Gália, conheceu a vida monástica oriental difundida por Santo Atanásio e passou a viver uma vida cenobítica, tornando-se, em seguida, eremita. Nesse período de ascese, dedicou-se ao estudo do grego e depois, confiando-se a um irmão judeu batizado, aprendeu o hebraico.

Na época em que iniciou os trabalhos de exegese, São Jerônimo já dominava perfeitamente o grego, e conhecera a obra de Orígenes, que passou a considerar um mestre. Desde então, ele sentia que seria capaz de dar toda a literatura pagã e toda a obra de Platão – stultus Plato – em troca de um só dos milhares tratados e homilias de Orígenes, afinal, tudo o que São Jerônimo havia descoberto de filosofia grega através de Cícero e Sêneca, estava aperfeiçoado em Orígenes. Como não preferir aquele discípulo de Clemente, que estava na posse da Verdade que Platão apenas entreviu? É também nessa época que, de posse dessas descobertas, e de um profundo arrependimento pelo tempo gasto na leitura dos pagãos em detrimento dos cristãos e dos livros santos, numa quaresma, e tomado de uma febre súbita, vê-se, num sonho, no tribunal celeste sendo inquirido por Nosso Senhor sobre sua condição. Ao se afirmar cristão, ouviu do Justo Juiz a marcante contestação: “Tu mentes! Não és cristão, és ciceroniano!”, e fez votos de não mais tornar a ler os pagãos. Tão grandioso pesadelo permaneceu em sua lembrança de uma forma tão nítida que mais tarde, descreveu-o como uma visão, e pensou seriamente durante sua convalescença em cumprir o voto feito no sonho. Porém, muito tempo depois, quando tinha atrás de si anos de estudos sobre as Escrituras, quando era capaz de ler o Antigo Testamento não apenas em grego, mas também em hebraico e em siríaco, ele voltou às Humanidades, convicto de que não poderia jamais conceber sua obra independentemente de toda a tradição[1].

Sua obra de exegeta, à propósito, muito influenciou sua própria prática de tradução, bem como toda a prática tradutória posterior, especialmente na Idade Média, como veremos mais adiante. Antes, porém, faz-se necessário conhecermos qual é a prática tradutória de São Jerônimo, para então examinarmos tais influências. Na seção seguinte, apresento-vos aquilo que deveria ser um breviário para todos os que quisessem empreender qualquer tarefa de tradução: a carta que São Jerônimo dirigiu ao amigo Pamáquio e que a intitulou De Optimo Genere Interpretandi.

De Optimo Genere Interpretandi

Se queremos ter acesso à obra tradutória de São Jerônimo, precisamos ler esta carta (Carta LVII), pois ela é o grande portal, a síntese do pensamento do glorioso santo acerca do que é traduzir. Trata-se de uma carta dirigida a um amigo chamado Pamáquio, na qual ele explica a razão de algumas críticas que vinha recebendo de seus adversários acerca de uma tradução que fizera, do grego para o latim, de uma carta do bispo Epifânio ao bispo João de Jerusalém. O último difundira alguns erros de doutrina e era advertido pelo primeiro a corrigi-los. Tal carta causou certa curiosidade entre leigos e religiosos cristãos, mas, por estar escrita em grego, nem todos conseguiram entendê-la. Um monge próximo a São Jerônimo lhe fez um pedido informal e particular para traduzir a carta em questão para o latim, o que São Jerônimo fez com certa relutância e firmes pedidos de que o monge mantivesse a tradução guardada para si. Ocorreu que a carta foi roubada por inimigos de São Jerônimo e chegou às mãos de Rufino, que a divulgou a fim de desautorizá-lo e ridicularizá-lo entre os seus com medíocres alegações de que São Jerônimo era um tradutor falsário, que não traduzia “fielmente” as palavras da carta.

Ora, este é o ponto nevrálgico de De Optimo Genere Interpretandi. É aqui que São Jerônimo derruba brilhantemente os ardilosos argumentos de Rufino, dando a conhecer sua prática de tradução através de sua veemente defesa. Na carta, São Jerônimo se apoia na tradição através da autoridade de Cícero, que séculos antes havia escrito um prefácio à sua própria tradução para o latim dos discursos dos oradores áticos Ésquino e Demóstenes, mostrando o modo como transpôs os discursos em grego para o latim, e cujo título, De Optimo Genere Oratorum, é uma clara inspiração a São Jerônimo.

No desenvolvimento da carta, o santo de Estridão aborda vários aspectos que devem ser observados no processo da tradução, entre os quais, a adequação da língua da tradução, a preservação da elegância do original no texto traduzido, as propriedades de cada língua, a sintaxe vocabular, a falta de expressões equivalentes na língua da tradução, os modos de tradução, os diferentes tipos de texto, que exigirão diferentes tipos de tradução etc. No entanto, o principal ponto de São Jerônimo é a defesa da tradução do sentido do texto original em vez da tradução literal. “Eu, porém, não apenas confesso, mas anuncio em alta voz que na tradução dos gregos, à parte as sagradas Escrituras, onde também a ordem das palavras é mistério, não traduzo palavra a partir de palavra, mas sentido a partir de sentido [2] (Carta LVII, 5, 2).

O sentido, portanto, importa mais que a quantidade e a equivalência das palavras, e isso ocorre naturalmente devido à estrutura de cada língua:  [...] algo foi significado com propriedade por uma única palavra, mas não tenho uma na minha [língua] com que a expresse, e, enquanto busco completar um pensamento, necessito um longo período para uma breve extensão” (Carta LVII, 5, 7)[3]. Com exceção das Sagradas Escrituras, onde “a ordem das palavras é mistério”, a prática de tradução de São Jerônimo não se pautou na tradução de palavras, mas na tradução do sentido[4], da essência do texto, e nisso, ele tem por mestres Cícero e Horácio, que defenderam o mesmo. Para São Jerônimo, a tradução pela letra ou pela equivalência das palavras nada mais é do que um mau zelo (kakozelía), ou seja, uma afetação dos ignorantes, como ele mesmo diz. Para amparar sua argumentação, nosso santo dá vários exemplos, como as traduções de Menandro feitas por Terêncio e as traduções dos comediógrafos antigos feitas por Plauto e Cecílio, alegando que eles preferiram conservar a beleza e a elegância na tradução, em vez da quantidade e da equivalência de palavras. Assim, desafia os que acreditam que a tradução pela equivalência não tira a beleza do texto na língua da tradução a traduzirem Homero para o latim palavra por palavra. O resultado seria um texto completamente incompreensível, um emaranhado de palavras sem ligações umas com as outras que soaria ridículo.

A omissão ou o acréscimo, portanto, de uma palavra ou de outra sem, contudo, alterar o sentido são vistos por São Jerônimo como uma necessidade da língua para a qual se traduz. Para que o nosso leitor compreenda melhor o pensamento do nosso santo tradutor, damos um exemplo em uma língua moderna: quando falamos a frase, em inglês, I miss you, sabemos que não há em português uma palavra que equivalha exatamente ao verbo miss. Contudo, sempre traduzimos a frase por Eu sinto falta de você, Eu sinto saudades de você, ou ainda, Estou com saudades de você. E muitas vezes, até omitimos o pronome you, dizendo apenas Estou com saudades, Sinto saudades, Tenho saudades. O verbo miss é então frequentemente traduzido por duas palavras: “sinto falta” ou “sinto saudades”, ou ainda por “tenho saudades”, e o pronome you pode ser omitido, sem contudo, alterarmos o sentido da frase original.

Nisto, pois, se firma a prática de São Jerônimo para os textos profanos. E mesmo quando traduz as Sagradas Escrituras, que ele adota um método mais rígido de tradução, não deixa de assinalar que tanto os Setenta, quanto os próprios Evangelistas, ao citar os Profetas, sacrificaram muitas vezes a letra em prol do sentido. Vejamos o que ele diz acerca da narração de São Mateus sobre o episódio em que Judas devolve aos sacerdotes as trinta moedas de prata aceitas antes por ele para trair Nosso Senhor (Mt. 27, 3-9):

 

Novamente em Mateus, com as trinta moedas de prata devolvidas pelo traidor Judas, também está escrito sobre o campo adquirido do oleiro: ‘então cumpriu-se o que foi escrito pelo profeta Jeremias, que diz: ‘E aceitaram as trinta moedas de prata como o preço do avaliado, o que avaliaram de acordo com os filhos de Israel, e ofereceram-nas pelo campo do oleiro, como me ordenou o Senhor.’ Isto não se encontra integralmente em Jeremias, mas em Zacarias, como bem outras palavras e numa ordem totalmente diferente [...]. Que acusem o evangelista de falsidade porque não concorda nem com o hebraico e nem com os Setenta Tradutores, e o que é ainda maior, erra no nome, em vez de Zacarias, colocou Jeremias”.

 

Está claro que São Jerônimo não utiliza tal exemplo para justificar um erro amparado na autoridade de um evangelista, mas para provar sua tese de que o sentido importa mais que a letra, pois, apesar de São Mateus confundir o nome do profeta (em vez de Zacarias, diz Jeremias), jamais altera o sentido do discurso, concordando com o Antigo Testamento “na unidade do espírito” (v. 7, 5).

É importante ressaltar que São Jerônimo não despreza a letra como se esta não fosse importante ou não fizesse parte do processo de tradução, mesmo porque, como já o citamos, ele não nega um rigor literal maior na tradução dos livros sagrados em comparação aos textos profanos. Sua preocupação é antes a compreensão integral do leitor da tradução, que terá em sua língua o espírito, a essência do original, sem ser incomodado pelos estranhamentos que a tradução literal, afetada por uma equivalência desnecessariamente escrupulosa pode causar. “Quantas coisas, pois, são bem ditas entre os gregos, as quais, se traduzimos palavra por palavra, não ressoam em latim, e, se as que nos agradam são vertidas diretamente conforme a ordem, desagradarão a eles”. (v. 11, 4).

Finalizamos esta seção reafirmando que a prática tradutória de São Jerônimo está dentro de uma tradição, isto é, ele recebeu de mestres que vieram antes dele as bases e os ensinamentos sobre a melhor forma de traduzir e, por estar inserido nesta tradição, transmitiu naturalmente seus modelos para a posteridade. Nosso santo tradutor, dotado, é verdade, de um temperamento iracundo, estava sempre inflamado pela caridade e iluminado pela Verdade, porque viveu unicamente para servir a Deus e à sua Igreja. Tomado de um santo entusiasmo por certas obras, traduziu-as por amor, para ser útil ao próximo, agradar os amigos, consolar-se muitas vezes de seus dissabores, aestantis animi taedium interpretatione digerere e atacar os erros e as mentiras do seu tempo. A Vulgata é a grande muralha de sua obra. Nas suas fontes de águas profundas, nossas literaturas beberam avidamente. Com ela São Jerônimo, pouco a pouco ultrapassando seus mestres e os seus próprios escritos, indo além das engessadas regras de retórica, das formas literárias, terminou por recriar a língua latina, reinventar sua sintaxe, tornando-a, ao mesmo tempo, a mais nobre e a mais popular das línguas. Foi sua Vulgata que antecipou as línguas românicas e que exerceu fortíssima influência no seu desenvolvimento.

Pensemos então em São Jerônimo como aquele grande Padre que deu ao ocidente a Bíblia hebraica e, junto com tão magnânimo presente, construiu um amplo viaduto de ligação entre Jerusalém e Roma, e entre Roma e todos os povos de línguas românicas, além daqueles outros que quiseram romanizar em parte seus idiomas. Muito do vocabulário e das construções sintáticas que se espalharam por entre esses povos é da Vulgata. Quem, além de São Jerônimo, pôde fazer algo semelhante? Que outro tradutor foi capaz de realizar uma empreitada tão colossal, fincando-se como um pilar e permanecendo impassível ao longo dos séculos?  A obra de São Jerônimo significa, portanto, o ponto de transição do pensamento oriental para o pensamento ocidental, da antiguidade clássica pagã para a Idade Média cristã, e agora vejamos como isso se deu no que tange às práticas de tradução medievais.

A Tradução na Idade Média

            A Idade Média começa com uma série de particularidades que têm completa relação com as práticas de tradução realizadas nesse período. Entre elas, podemos destacar: a queda do Império Romano em 476, a progressiva perda do grego e o forte avanço do cristianismo num primeiro momento e, depois, o surgimento das inúmeras línguas vernáculas. Esses fatores reunidos configuram um aumento real da necessidade de tradução na Idade Média, pois, avançando o cristianismo, perdendo-se o grego, e surgindo novas línguas, os textos dos filósofos, dos Padres e dos poetas tornavam-se cada vez menos acessível, o que gerava para a fé e para a formação humana, de modo geral, certa desvantagem. A partir dessa necessidade, as traduções adquirem um valor muito mais utilitário do que literário, perdendo-se em parte o conceito clássico da imitação artística em detrimento da urgência de transmissão de conteúdo. Isto gerou um acirramento maior na diferença entre a tradução literal, condenadas por Cícero, Horácio e, posteriormente, por São Jerônimo, e a tradução pelo sentido que, na Idade Média, adquire um caráter mais criativo, pois terá como base a paráfrase e a exegese, levemente estabelecidas por São Jerônimo em De Optimo Genere Interpretandi.

Contudo, a tradução medieval configura-se como uma atividade muito rica e, em certo sentido, complexa. Ela serve-se, na verdade, de muitas fontes, principalmente dos comentários e prefácios dos primeiros tradutores aos textos originais no sentido de entender, em primeiro lugar, o seu conteúdo e, em seguida, explicá-lo também na tradução. Aqui talvez possamos estabelecer o ponto mais característico da prática tradutória medieval: uma busca pela tradição manuscrita de traduções que continham os prefácios e os comentários ao texto original. Tal busca gerou outra prática: a da interpretação textual a partir desses mesmos prefácios e comentários antes da realização da tradução propriamente dita. O resultado desse processo deságua num fino trabalho de exegese misturado à prática de tradução, vindo a ser a principal característica da tradução medieval. Vejamos agora mais detalhadamente as etapas desse processo.

1. O Desenvolvimento da Enarratio: segundo Quintiliano (I, 4, 2), a enarratio era uma das partes da gramática. Tratava-se, na verdade, de uma atividade literária sem muitas exigências criativas ou artísticas, voltada muito mais para os exercícios de interpretação, glosa e imitação dos autores lidos praticada já desde os tempos romanos. Como na Idade Média a tarefa de tradução recorreu fortemente aos comentários aos textos originais, como dissemos anteriormente, os exercícios de interpretação e exegese passaram a ser frequentemente realizados pelos tradutores a fim de explicar o conteúdo dos textos. Na Idade Média, portanto, a tradução dos autores clássicos para as línguas vernáculas é uma prática indissociável da exegese, do comentário e da aproximação textual.

Nesse sentido, houve um florescimento dos exercícios da enarratio na prática da tradução, e os comentários, glosas e paráfrases praticamente substituíam os originais. No entanto, apesar de não estar diretamente relacionada com a criatividade literária, a enarratio assume certo aspecto criativo e, na tradução medieval, deixa de ser uma simples reprodução, pois abre espaço para as possibilidades de recriar, enriquecer, corrigir, variar, influindo fortemente na recepção e na posterior transmissão do texto, bem como atuando em diferentes níveis textuais, desde o estilo até a estrutura. Muitas palavras eram explicadas por sinônimos ou por expressões inteiras quando não era possível solucionar pela equivalência, e cada passagem era analisada, interpretada e muitas vezes, ao verter para a língua da tradução, era reestruturada.

Podemos dizer que tais práticas se amparam na tradução pelo sentido  dos romanos e, posteriormente, consolidada por São Jerônimo. Quando o santo tradutor afirma que muitas vezes transpunha uma única palavra ou expressão pelo uso de um período inteiro por não encontrar uma boa equivalência em latim para preservar o sentido e a elegância do original (5, 7), não está ele antecipando a prática medieval da paráfrase e da enarratio na tradução? Por outro lado, a preocupação medieval com a “explicação” por meio da exegese, da interpretação do texto original, não é a busca de uma fidelidade ao sentido do texto, ao que ele quer dizer?

2. Ad verbum versus ad sensum: Como vimos, a dicotomia tradutória da letra versus o sentido é colocada desde a Antiguidade Romana, com Cícero e Horácio, e persiste séculos mais tarde com a defesa de São Jerônimo amparando-se no pensamento de seus mestres. Os romanos, especialmente Cícero, defenderam o sentido do texto original com o enfoque no texto traduzido, isto é, numa espécie de apropriação linguística, ou ainda, numa espécie de domesticação da língua original. Em outras palavras, seu esforço estava voltado para fazer o autor original, seja Ésquino, Demóstenes ou Xenofonte, “falar” em latim com a mesma elegância que falou em sua língua de origem. São Jerônimo, entretanto, altera em certa medida essa perspectiva, pois, embora defendendo também a tradução pelo sentido, seu enfoque volta-se para o texto original, preocupando-se com a veritas, isto é, com a fidelidade ao texto de partida. O fidus interpres horaciano passa a ser com São Jerônimo o tradutor que preserva o sentido do texto original e que usa a retórica apenas para manter o sentido no texto traduzido.  

Essa leve mudança de perspectiva de São Jerônimo, uma vez identificada pelos medievais, é suficiente para abrir espaço para novas discussões em torno do literalismo em oposição ao sentido nas práticas de tradução. Alguns nomes importantes da Idade Média surgem então no cenário, e aqui destaco Boécio (480-524), João Escoto (810-872) e Roger Bacon (1214-1294).

Boécio defendeu que a tradução do conteúdo do texto só poderia ser feita pelo literalismo. Para o filósofo, a única garantia de preservação da essência do original era a manutenção da letra. Na mesma linha de pensamento segue Escoto, defensor da tradução ad verbum, no entanto, sua preocupação maior foi tentar estabelecer uma diferenciação entre tradução e exegese, que caminhavam juntas nas práticas tradutórias até então, como vimos. Tal tentativa gerou um problema dentro do próprio nível da exegese, uma vez que no contexto medieval era a palavra interpres que designava o tradutor e interpretatio, a tradução. Eliminar o motivo exegético dessas duas palavras tornou-se algo quase paradoxal, principalmente quando alguns filósofos retomaram a acepção aristotélica de “discurso”, “significação”, empregada ao conceito de exegese.

Roger Bacon retoma uma aproximação maior com São Jerônimo. Em sua Opus Maius, mais especificamente na parte intitulada “De Utilitate Grammaticae” dedica um espaço para tecer algumas considerações sobre tradução, recusando veementemente a tradução ad verbum. Sua principal contribuição foi ter proposto pela primeira vez a sustentação de que para uma boa tradução é necessário, além do conhecimento profundo de ambas as línguas (tanto a original quanto a da tradução), o conhecimento do assunto do texto a ser traduzido, de modo que textos filosóficos sejam traduzidos por quem domine a filosofia, textos literários por quem domine a literatura etc. Tal contribuição de Bacon perdurou séculos mais tarde, sendo retomada por Leonardo Bruni e pelos teóricos da tradução renascentistas.

3. O surgimento das literaturas em línguas vernáculas: À medida que as línguas vernáculas foram se desenvolvendo nas várias partes da Europa, foram também se desenvolvendo suas literaturas, que exigiram, naturalmente, traduções dos textos latinos para se fortalecerem literariamente. A partir do século VII surgem as traduções dos textos latinos para as línguas românicas e nos séculos VIII e IX, para as línguas germânicas.

As primeiras traduções do latim para as línguas vernáculas foram, em sua maioria de textos religiosos, com destaque para a tradução anglo-saxã dos Salmos feita por Adelmo (c. 650-709). Apenas no século IX o Concílio de Tours dá a permissão para se traduzir as homilias dos Padres para as línguas vernáculas, enquanto as Sagradas Escrituras só virão a ser traduzidas inteiramente em vernáculo no Renascimento. É importante ressaltar que as práticas medievais de tradução para as línguas vernáculas continuaram sendo pautadas pela exegese, pelos comentários, glosas e paráfrases. Esta foi sua característica básica, e apesar de terem surgido importantes comentários acerca da atividade de traduzir por parte de filósofos e tradutores, não houve na Idade Média uma reflexão mais profunda e sistemática, muito menos o desenvolvimento de uma teoria da tradução. Isso porque as línguas vernáculas que foram surgindo não tinham ainda uma autonomia firmada em relação ao latim e a tradução, por mais que tenha se desenvolvido como uma atividade, não possuía uma particularidade, mas se mesclava à prática de escrita de glosas e comentários.

No entanto, as soluções encontradas pelos tradutores medievais, em sua maioria, pautavam-se no legado de São Jerônimo. Dele a Idade Média e os períodos seguintes herdaram a fórmula non verbum pro verbo, sed sensum pro senso, que se tornou o modelo de fidelidade textual tradutória, e não apenas uma opção do tradutor. Foi então esta fórmula que fomentou e ajudou a desenvolver as teorias posteriores que se pautaram pela manutenção do sentido, e com alegria finalizamos este breve texto louvando o patrocínio deste grande santo, o Doctor Doctorum, que deu à Igreja e a todo o mundo ocidental uma das mais colossais obras da humanidade, e representando a transição da Antiguidade Clássica para a Idade Média cristã, ditou os rumos de toda uma cultura literária no ocidente.

Rogai por nós, São Jerônimo, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.  

 

 



[1] Vide a Carta LXX a Magnus, que mostra o ponto de vista de São Jerônimo a respeito da utilidade das letras humanas para a formação dos espíritos.

[2] Todas os trechos da Carta de São Jerônimo De Optimo Genere Interpretandi utilizadas como citação neste texto são da tradução de Mauri Furlan (2019), para o Projeto Antologia da Primeira Idade Média.

[3] Isto gerou a prática da paráfrase na tradução medieval.

[4] Mesmo na tradução dos livros sagrados, São Jerônimo recorre muitas vezes ao sentido, como é possível observar nos prefácios aos livros de Judite, Tobias e Jó.

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