Embora
pouco se fale a este respeito, a atividade de traduzir ocupa um importantíssimo
papel na história da civilização. É através dela que inúmeras obras
estrangeiras chegam aos diversos povos e passam a fazer parte do fundamento de
sua formação, do seu patrimônio cultural e intelectual. Muitas obras, que
poderiam já estar perdidas para sempre, sobrevivem e vão ganhando novo vigor a
cada época e a cada tradução feita a partir dela. Pensemos, por exemplo, na Ilíada
e na Odisseia, de Homero, tidas como as primeiras obras da literatura
ocidental, compostas por volta do século VIII a.C. Sem as traduções para as
diversas línguas vernáculas, quantos de nós conheceríamos a ira do Pelida
Aquiles e os sofrimentos do astucioso Ulisses no seu retorno para casa? Será
que as epopeias homéricas não estariam completamente esquecidas, ou mesmo
perdidas, se não tivessem ganhado, ao longo desses quase trinta séculos, tantas
traduções em tantas línguas diferentes? Conheceríamos, porventura, algo sobre
as civilizações mais antigas, se não houvesse a preocupação de manter e
traduzir ao longo do tempo as obras produzidas nesses períodos? O que seria do cânone literário e das ciências, por exemplo, se não fosse a atividade de tradução?
O que saberíamos sobre os gregos e os romanos? Quem seriam para nós Dante,
Cervantes, Milton, Shakespeare e tantos outros grandes escritores e poetas estrangeiros?
Tais
perguntas só começam a surgir em nossa mente quando nos tornamos capazes de nos
afastar da ideia afetada da inferioridade das traduções e pensamos de maneira
mais profunda acerca dela, bem como do nobre papel dos tradutores que, conforme
o crítico francês Valery Larbaud (1881-1957) acentua, realizam uma verdadeira
obra de caridade, habilitando-nos a conhecer e a contemplar as verdades
universais abrigadas pelas grandes obras estrangeiras, e que, por isso mesmo,
importam não apenas para as línguas nas quais foram escritas, mas para toda a
civilização. E se é quase impossível conceber um ocidente sem as grandes obras
e os autores mencionados no parágrafo anterior, o que pensar então de toda a romanidade cristã, de toda a tradição ocidental sem o pleno conhecimento e o influxo do
conteúdo das Sagradas Escrituras? Sim. Das Sagradas Escrituras! Mas por que
teríamos que imaginar tal coisa? Ora, os textos bíblicos definitivos utilizados
pela Santa Igreja assentam-se sobre uma tradução, a famosa Vulgata,
empreendida durante anos à fio por ninguém menos que um dos quatro padres da
Igreja Latina: São Jerônimo (c. 347-420). A ele é dado, justissimamente, o
título de patrono dos tradutores: na terra, seu mais completo e perfeito
modelo; no céu, seu poderoso padroeiro. Tal título, no entanto, não lhe é
reputado somente por ter traduzido pura e simplesmente as Sagradas Escrituras
para o latim, mas, sobretudo, por ter moldado toda a prática posterior de
tradução no mundo ocidental e exercido sua forte influência nos estudos que, ao
longo dos séculos, culminaram numa teoria da tradução.
Este breve ensaio não tem como propósito rastrear todos os estudos e práticas que tiveram por base o modelo tradutório de São Jerônimo, mas tão somente comentar como sua influência foi exercida nas práticas de tradução no áureo período da Idade Média. Para isso, situemos antes o nosso leitor acerca da marcante e gloriosa figura de São Jerônimo e das suas inigualáveis lições sobre a prática de tradução.
Um pouco da vida e da obra de São Jerônimo
Um
crucifixo, um crânio e uma pedra... Apenas isso bastava a São Jerônimo para
escrever. Em quantas representações artísticas não vemos um austero ancião
cercado de compêndios de livros e irradiado pelo mistério sobrenatural emanante
daqueles objetos? Se, por um acaso, não conhecêssemos a tradição cristã,
diríamos certamente que tais representações mostravam um escritor; e se depois
nos explicassem que se tratava de um santo católico, atribuiríamos certamente
seu patrocínio aos homens de letras. Com toda razão e justiça faríamos isso,
pois São Jerônimo, antes de tradutor, foi um homem de letras. Sua obra é como
um monumento para o qual olhamos repetidas vezes sem nunca deixarmos de nos
admirar, porque a grandeza de sua obra comunica ao nosso intelecto, e basta que
leiamos brevemente alguns de seus prefácios aos livros da Vulgata, ou
ainda algumas de suas cartas, para que imediatamente vejamos nele um verdadeiro
mestre do pensamento e da linguagem.
Nascido em
Estridão, fronteira entre a Dalmácia e a Panônia, por volta do ano 347, fez-se,
contudo, visceralmente romano. Apesar de ter passado a segunda metade de sua
vida – 35 anos – em Belém, sempre foi para Roma que ele viveu. Para Roma, sede
dos anos mais agitados de sua adolescência e mais prósperos de sua vida adulta.
Foi em Roma que ele exerceu seu ‘cardinalato’ como secretário do Papa Dâmaso, e
onde fundou uma escola religioso-literária, que depois veio a ser uma família
espiritual, composta dos mais excelentes cristãos e das mais pias e eruditas
mulheres romanas, como Santa Paula, Santa Blesila e Santa Eustóquia. Quando se
dirigiu a Belém numa espécie de santo exílio para nunca mais retornar vivo à
Cidade Eterna, ainda assim, lá permaneceu presente por sua forte e gloriosa
influência. Para lá dirigia incessantemente seu pensamento: seus escritos eram dirigidos
a Roma, lidos, comentados e até mesmo atacados na capital católica. Quando, ao
partir, exclama Babilônia! em referência a Roma, é ainda porque a ama e
porque permanece romano, já que o termo, na época de São Jerônimo se confundia
com “cristão” e, logo depois, com “católico”. Com efeito, a injúria proferida
não é fruto da fúria de um derrotado pelos inimigos, mas da ira santa de um pai,
de uma alma forte e santamente romana e, por isso mesmo, cristã. Foi, portanto,
para as mentes e os ouvidos romanos, e depois para todo o ocidente latino, que
ele empreendeu a maior e mais gloriosa obra de sua vida: a de tradutor das
Sagradas Escrituras. Morreu em Belém, em 420, mas permaneceu tão fortemente
romano, que Roma exigiu suas relíquias, e podemos nos aproximar de sua memória
na Capela do Santo Sacramento da Basílica Liberiana sob a relíquia do Presépio,
o pedaço de Belém na Cidade Eterna.
São
Jerônimo teve influências clássicas, fruto da alta educação que recebeu em Roma.
Tendo estudado retórica com o orador Vitorino e gramática com Donato, entrou em
contato com a literatura clássica, e prendeu-se apaixonadamente nela. Só depois
é que Cristo, esquecido nos devaneios da juventude, sobreveio em sua alma. No
período de sua conversão, por volta do ano de 360, deliciava-se com visitas às
catacumbas e começava a conhecer mais profundamente o tesouro da cristandade. Recebeu,
enfim, o batismo e partiu para Trier, onde entrou em contato com a leitura dos
exegetas latinos, que começaram a disputar sua atenção com os pagãos, especialmente
os autores da época republicana e octaviana, de quem ele ainda não se
desvencilhara, e por quem nutria uma apaixonada preferência. Na Gália, conheceu
a vida monástica oriental difundida por Santo Atanásio e passou a viver uma
vida cenobítica, tornando-se, em seguida, eremita. Nesse período de ascese,
dedicou-se ao estudo do grego e depois, confiando-se a um irmão judeu batizado,
aprendeu o hebraico.
Na época
em que iniciou os trabalhos de exegese, São Jerônimo já dominava perfeitamente
o grego, e conhecera a obra de Orígenes, que passou a considerar um mestre.
Desde então, ele sentia que seria capaz de dar toda a literatura pagã e toda a
obra de Platão – stultus Plato – em troca de um só dos milhares tratados
e homilias de Orígenes, afinal, tudo o que São Jerônimo havia descoberto de
filosofia grega através de Cícero e Sêneca, estava aperfeiçoado em Orígenes.
Como não preferir aquele discípulo de Clemente, que estava na posse da Verdade
que Platão apenas entreviu? É também nessa época que, de posse dessas
descobertas, e de um profundo arrependimento pelo tempo gasto na leitura dos
pagãos em detrimento dos cristãos e dos livros santos, numa quaresma, e tomado
de uma febre súbita, vê-se, num sonho, no tribunal celeste sendo inquirido por
Nosso Senhor sobre sua condição. Ao se afirmar cristão, ouviu do Justo Juiz a
marcante contestação: “Tu mentes! Não és cristão, és ciceroniano!”, e fez votos
de não mais tornar a ler os pagãos. Tão grandioso pesadelo permaneceu em sua
lembrança de uma forma tão nítida que mais tarde, descreveu-o como uma visão, e
pensou seriamente durante sua convalescença em cumprir o voto feito no sonho.
Porém, muito tempo depois, quando tinha atrás de si anos de estudos sobre as
Escrituras, quando era capaz de ler o Antigo Testamento não apenas em grego,
mas também em hebraico e em siríaco, ele voltou às Humanidades, convicto de que
não poderia jamais conceber sua obra independentemente de toda a tradição[1].
Sua obra de exegeta, à propósito, muito influenciou sua própria prática de tradução, bem como toda a prática tradutória posterior, especialmente na Idade Média, como veremos mais adiante. Antes, porém, faz-se necessário conhecermos qual é a prática tradutória de São Jerônimo, para então examinarmos tais influências. Na seção seguinte, apresento-vos aquilo que deveria ser um breviário para todos os que quisessem empreender qualquer tarefa de tradução: a carta que São Jerônimo dirigiu ao amigo Pamáquio e que a intitulou De Optimo Genere Interpretandi.
De Optimo Genere Interpretandi
Se
queremos ter acesso à obra tradutória de São Jerônimo, precisamos ler esta
carta (Carta LVII), pois ela é o grande portal, a síntese do pensamento
do glorioso santo acerca do que é traduzir. Trata-se de uma carta dirigida a um
amigo chamado Pamáquio, na qual ele explica a razão de algumas críticas que
vinha recebendo de seus adversários acerca de uma tradução que fizera, do grego
para o latim, de uma carta do bispo Epifânio ao bispo João de Jerusalém. O
último difundira alguns erros de doutrina e era advertido pelo primeiro a
corrigi-los. Tal carta causou certa curiosidade entre leigos e religiosos
cristãos, mas, por estar escrita em grego, nem todos conseguiram entendê-la. Um
monge próximo a São Jerônimo lhe fez um pedido informal e particular para
traduzir a carta em questão para o latim, o que São Jerônimo fez com certa
relutância e firmes pedidos de que o monge mantivesse a tradução guardada para
si. Ocorreu que a carta foi roubada por inimigos de São Jerônimo e chegou às
mãos de Rufino, que a divulgou a fim de desautorizá-lo e ridicularizá-lo entre os
seus com medíocres alegações de que São Jerônimo era um tradutor falsário, que
não traduzia “fielmente” as palavras da carta.
Ora, este
é o ponto nevrálgico de De Optimo Genere Interpretandi. É aqui que São
Jerônimo derruba brilhantemente os ardilosos argumentos de Rufino, dando a
conhecer sua prática de tradução através de sua veemente defesa. Na carta, São
Jerônimo se apoia na tradição através da autoridade de Cícero, que séculos
antes havia escrito um prefácio à sua própria tradução para o latim dos discursos
dos oradores áticos Ésquino e Demóstenes, mostrando o modo como transpôs os
discursos em grego para o latim, e cujo título, De Optimo Genere Oratorum,
é uma clara inspiração a São Jerônimo.
No
desenvolvimento da carta, o santo de Estridão aborda vários aspectos que devem
ser observados no processo da tradução, entre os quais, a adequação da língua
da tradução, a preservação da elegância do original no texto traduzido, as
propriedades de cada língua, a sintaxe vocabular, a falta de expressões
equivalentes na língua da tradução, os modos de tradução, os diferentes tipos
de texto, que exigirão diferentes tipos de tradução etc. No entanto, o
principal ponto de São Jerônimo é a defesa da tradução do sentido do texto
original em vez da tradução literal. “Eu, porém, não apenas confesso, mas anuncio
em alta voz que na tradução dos gregos, à parte as sagradas Escrituras, onde também
a ordem das palavras é mistério, não traduzo palavra a partir de palavra, mas
sentido a partir de sentido” [2]
(Carta LVII, 5, 2).
O sentido,
portanto, importa mais que a quantidade e a equivalência das palavras, e isso
ocorre naturalmente devido à estrutura de cada língua: [...] algo foi significado com propriedade
por uma única palavra, mas não tenho uma na minha [língua] com que a expresse,
e, enquanto busco completar um pensamento, necessito um longo período para uma
breve extensão” (Carta LVII, 5, 7)[3].
Com exceção das Sagradas Escrituras, onde “a ordem das palavras é mistério”,
a prática de tradução de São Jerônimo não se pautou na tradução de palavras,
mas na tradução do sentido[4],
da essência do texto, e nisso, ele tem por mestres Cícero e Horácio, que
defenderam o mesmo. Para São Jerônimo, a tradução pela letra ou pela
equivalência das palavras nada mais é do que um mau zelo (kakozelía), ou
seja, uma afetação dos ignorantes, como ele mesmo diz. Para amparar sua
argumentação, nosso santo dá vários exemplos, como as traduções de Menandro
feitas por Terêncio e as traduções dos comediógrafos antigos feitas por Plauto
e Cecílio, alegando que eles preferiram conservar a beleza e a elegância na
tradução, em vez da quantidade e da equivalência de palavras. Assim, desafia os
que acreditam que a tradução pela equivalência não tira a beleza do texto na
língua da tradução a traduzirem Homero para o latim palavra por palavra. O
resultado seria um texto completamente incompreensível, um emaranhado de
palavras sem ligações umas com as outras que soaria ridículo.
A omissão
ou o acréscimo, portanto, de uma palavra ou de outra sem, contudo, alterar o
sentido são vistos por São Jerônimo como uma necessidade da língua para a qual
se traduz. Para que o nosso leitor compreenda melhor o pensamento do nosso
santo tradutor, damos um exemplo em uma língua moderna: quando falamos a frase,
em inglês, I miss you, sabemos que não há em português uma palavra que
equivalha exatamente ao verbo miss. Contudo, sempre traduzimos a frase
por Eu sinto falta de você, Eu sinto saudades de você, ou ainda, Estou
com saudades de você. E muitas vezes, até omitimos o pronome you,
dizendo apenas Estou com saudades, Sinto saudades, Tenho
saudades. O verbo miss é então frequentemente traduzido por duas
palavras: “sinto falta” ou “sinto saudades”, ou ainda por “tenho saudades”, e o
pronome you pode ser omitido, sem contudo, alterarmos o sentido da frase
original.
Nisto,
pois, se firma a prática de São Jerônimo para os textos profanos. E mesmo
quando traduz as Sagradas Escrituras, que ele adota um método mais rígido de
tradução, não deixa de assinalar que tanto os Setenta, quanto os próprios Evangelistas,
ao citar os Profetas, sacrificaram muitas vezes a letra em prol do sentido.
Vejamos o que ele diz acerca da narração de São Mateus sobre o episódio em que
Judas devolve aos sacerdotes as trinta moedas de prata aceitas antes por ele
para trair Nosso Senhor (Mt. 27, 3-9):
“Novamente
em Mateus, com as trinta moedas de prata devolvidas pelo traidor Judas, também
está escrito sobre o campo adquirido do oleiro: ‘então cumpriu-se o que foi
escrito pelo profeta Jeremias, que diz: ‘E aceitaram as trinta moedas de prata
como o preço do avaliado, o que avaliaram de acordo com os filhos de Israel, e
ofereceram-nas pelo campo do oleiro, como me ordenou o Senhor.’ Isto não se
encontra integralmente em Jeremias, mas em Zacarias, como bem outras palavras e
numa ordem totalmente diferente [...]. Que acusem o evangelista de falsidade
porque não concorda nem com o hebraico e nem com os Setenta Tradutores, e o que
é ainda maior, erra no nome, em vez de Zacarias, colocou Jeremias”.
Está claro
que São Jerônimo não utiliza tal exemplo para justificar um erro amparado na
autoridade de um evangelista, mas para provar sua tese de que o sentido importa
mais que a letra, pois, apesar de São Mateus confundir o nome do profeta (em
vez de Zacarias, diz Jeremias), jamais altera o sentido do discurso, concordando
com o Antigo Testamento “na unidade do espírito” (v. 7, 5).
É
importante ressaltar que São Jerônimo não despreza a letra como se esta não
fosse importante ou não fizesse parte do processo de tradução, mesmo porque,
como já o citamos, ele não nega um rigor literal maior na tradução dos livros
sagrados em comparação aos textos profanos. Sua preocupação é antes a
compreensão integral do leitor da tradução, que terá em sua língua o espírito,
a essência do original, sem ser incomodado pelos estranhamentos que a tradução
literal, afetada por uma equivalência desnecessariamente escrupulosa pode
causar. “Quantas coisas, pois, são bem ditas entre os gregos, as quais, se
traduzimos palavra por palavra, não ressoam em latim, e, se as que nos agradam
são vertidas diretamente conforme a ordem, desagradarão a eles”. (v. 11, 4).
Finalizamos
esta seção reafirmando que a prática tradutória de São Jerônimo está dentro de
uma tradição, isto é, ele recebeu de mestres que vieram antes dele as bases e
os ensinamentos sobre a melhor forma de traduzir e, por estar inserido nesta
tradição, transmitiu naturalmente seus modelos para a posteridade. Nosso santo
tradutor, dotado, é verdade, de um temperamento iracundo, estava sempre
inflamado pela caridade e iluminado pela Verdade, porque viveu unicamente para servir
a Deus e à sua Igreja. Tomado de um santo entusiasmo por certas obras, traduziu-as
por amor, para ser útil ao próximo, agradar os amigos, consolar-se muitas vezes
de seus dissabores, aestantis animi taedium interpretatione digerere e
atacar os erros e as mentiras do seu tempo. A Vulgata é a grande muralha
de sua obra. Nas suas fontes de águas profundas, nossas literaturas beberam
avidamente. Com ela São Jerônimo, pouco a pouco ultrapassando seus mestres e os
seus próprios escritos, indo além das engessadas regras de retórica, das formas
literárias, terminou por recriar a língua latina, reinventar sua sintaxe,
tornando-a, ao mesmo tempo, a mais nobre e a mais popular das línguas. Foi sua Vulgata
que antecipou as línguas românicas e que exerceu fortíssima influência no
seu desenvolvimento.
Pensemos então em São Jerônimo como aquele grande Padre que deu ao ocidente a Bíblia hebraica e, junto com tão magnânimo presente, construiu um amplo viaduto de ligação entre Jerusalém e Roma, e entre Roma e todos os povos de línguas românicas, além daqueles outros que quiseram romanizar em parte seus idiomas. Muito do vocabulário e das construções sintáticas que se espalharam por entre esses povos é da Vulgata. Quem, além de São Jerônimo, pôde fazer algo semelhante? Que outro tradutor foi capaz de realizar uma empreitada tão colossal, fincando-se como um pilar e permanecendo impassível ao longo dos séculos? A obra de São Jerônimo significa, portanto, o ponto de transição do pensamento oriental para o pensamento ocidental, da antiguidade clássica pagã para a Idade Média cristã, e agora vejamos como isso se deu no que tange às práticas de tradução medievais.
A Tradução na Idade Média
A Idade Média começa com uma série de
particularidades que têm completa relação com as práticas de tradução realizadas
nesse período. Entre elas, podemos destacar: a queda do Império Romano em 476,
a progressiva perda do grego e o forte avanço do cristianismo num primeiro momento
e, depois, o surgimento das inúmeras línguas vernáculas. Esses fatores reunidos
configuram um aumento real da necessidade de tradução na Idade Média, pois, avançando
o cristianismo, perdendo-se o grego, e surgindo novas línguas, os textos dos
filósofos, dos Padres e dos poetas tornavam-se cada vez menos acessível, o que gerava
para a fé e para a formação humana, de modo geral, certa desvantagem. A partir
dessa necessidade, as traduções adquirem um valor muito mais utilitário do que
literário, perdendo-se em parte o conceito clássico da imitação artística em
detrimento da urgência de transmissão de conteúdo. Isto gerou um acirramento
maior na diferença entre a tradução literal, condenadas por Cícero, Horácio e,
posteriormente, por São Jerônimo, e a tradução pelo sentido que, na Idade
Média, adquire um caráter mais criativo, pois terá como base a paráfrase e a
exegese, levemente estabelecidas por São Jerônimo em De Optimo Genere
Interpretandi.
Contudo, a
tradução medieval configura-se como uma atividade muito rica e, em certo
sentido, complexa. Ela serve-se, na verdade, de muitas fontes, principalmente
dos comentários e prefácios dos primeiros tradutores aos textos originais no
sentido de entender, em primeiro lugar, o seu conteúdo e, em seguida,
explicá-lo também na tradução. Aqui talvez possamos estabelecer o ponto mais
característico da prática tradutória medieval: uma busca pela tradição
manuscrita de traduções que continham os prefácios e os comentários ao texto
original. Tal busca gerou outra prática: a da interpretação textual a partir desses
mesmos prefácios e comentários antes da realização da tradução propriamente
dita. O resultado desse processo deságua num fino trabalho de exegese misturado
à prática de tradução, vindo a ser a principal característica da tradução
medieval. Vejamos agora mais detalhadamente as etapas desse processo.
1. O
Desenvolvimento da Enarratio: segundo Quintiliano (I, 4, 2), a enarratio
era uma das partes da gramática. Tratava-se, na verdade, de uma atividade
literária sem muitas exigências criativas ou artísticas, voltada muito mais
para os exercícios de interpretação, glosa e imitação dos autores lidos
praticada já desde os tempos romanos. Como na Idade Média a tarefa de tradução
recorreu fortemente aos comentários aos textos originais, como dissemos
anteriormente, os exercícios de interpretação e exegese passaram a ser
frequentemente realizados pelos tradutores a fim de explicar o conteúdo dos
textos. Na Idade Média, portanto, a tradução dos autores clássicos para as
línguas vernáculas é uma prática indissociável da exegese, do comentário e da
aproximação textual.
Nesse
sentido, houve um florescimento dos exercícios da enarratio na prática
da tradução, e os comentários, glosas e paráfrases praticamente substituíam os
originais. No entanto, apesar de não estar diretamente relacionada com a
criatividade literária, a enarratio assume certo aspecto criativo e, na
tradução medieval, deixa de ser uma simples reprodução, pois abre espaço para
as possibilidades de recriar, enriquecer, corrigir, variar, influindo
fortemente na recepção e na posterior transmissão do texto, bem como atuando em
diferentes níveis textuais, desde o estilo até a estrutura. Muitas palavras
eram explicadas por sinônimos ou por expressões inteiras quando não era
possível solucionar pela equivalência, e cada passagem era analisada,
interpretada e muitas vezes, ao verter para a língua da tradução, era
reestruturada.
Podemos dizer
que tais práticas se amparam na tradução pelo sentido dos romanos
e, posteriormente, consolidada por São Jerônimo. Quando o santo tradutor afirma
que muitas vezes transpunha uma única palavra ou expressão pelo uso de um período
inteiro por não encontrar uma boa equivalência em latim para preservar o
sentido e a elegância do original (5, 7), não está ele antecipando a prática medieval
da paráfrase e da enarratio na tradução? Por outro lado, a preocupação
medieval com a “explicação” por meio da exegese, da interpretação do texto original, não é a busca de uma fidelidade ao sentido do texto, ao que ele quer
dizer?
2. Ad
verbum versus ad sensum: Como vimos, a dicotomia tradutória da letra versus
o sentido é colocada desde a Antiguidade Romana, com Cícero e Horácio, e
persiste séculos mais tarde com a defesa de São Jerônimo amparando-se no
pensamento de seus mestres. Os romanos, especialmente Cícero, defenderam o
sentido do texto original com o enfoque no texto traduzido, isto é, numa
espécie de apropriação linguística, ou ainda, numa espécie de domesticação da
língua original. Em outras palavras, seu esforço estava voltado para fazer o
autor original, seja Ésquino, Demóstenes ou Xenofonte, “falar” em latim com a
mesma elegância que falou em sua língua de origem. São Jerônimo, entretanto, altera
em certa medida essa perspectiva, pois, embora defendendo também a tradução
pelo sentido, seu enfoque volta-se para o texto original, preocupando-se com a veritas,
isto é, com a fidelidade ao texto de partida. O fidus interpres
horaciano passa a ser com São Jerônimo o tradutor que preserva o sentido do
texto original e que usa a retórica apenas para manter o sentido no texto
traduzido.
Essa leve
mudança de perspectiva de São Jerônimo, uma vez identificada pelos medievais, é
suficiente para abrir espaço para novas discussões em torno do literalismo em
oposição ao sentido nas práticas de tradução. Alguns nomes importantes da Idade
Média surgem então no cenário, e aqui destaco Boécio (480-524), João Escoto (810-872)
e Roger Bacon (1214-1294).
Boécio defendeu
que a tradução do conteúdo do texto só poderia ser feita pelo literalismo. Para
o filósofo, a única garantia de preservação da essência do original era a
manutenção da letra. Na mesma linha de pensamento segue Escoto, defensor da
tradução ad verbum, no entanto, sua preocupação maior foi tentar
estabelecer uma diferenciação entre tradução e exegese, que caminhavam juntas
nas práticas tradutórias até então, como vimos. Tal tentativa gerou um problema
dentro do próprio nível da exegese, uma vez que no contexto medieval era a
palavra interpres que designava o tradutor e interpretatio, a
tradução. Eliminar o motivo exegético dessas duas palavras tornou-se algo quase
paradoxal, principalmente quando alguns filósofos retomaram a acepção
aristotélica de “discurso”, “significação”, empregada ao conceito de exegese.
Roger
Bacon retoma uma aproximação maior com São Jerônimo. Em sua Opus Maius,
mais especificamente na parte intitulada “De Utilitate Grammaticae” dedica um
espaço para tecer algumas considerações sobre tradução, recusando veementemente
a tradução ad verbum. Sua principal contribuição foi ter proposto pela
primeira vez a sustentação de que para uma boa tradução é necessário, além do
conhecimento profundo de ambas as línguas (tanto a original quanto a da
tradução), o conhecimento do assunto do texto a ser traduzido, de modo que textos
filosóficos sejam traduzidos por quem domine a filosofia, textos literários por
quem domine a literatura etc. Tal contribuição de Bacon perdurou séculos mais
tarde, sendo retomada por Leonardo Bruni e pelos teóricos da tradução renascentistas.
3. O
surgimento das literaturas em línguas vernáculas: À medida que
as línguas vernáculas foram se desenvolvendo nas várias partes da Europa, foram
também se desenvolvendo suas literaturas, que exigiram, naturalmente, traduções
dos textos latinos para se fortalecerem literariamente. A partir do século VII
surgem as traduções dos textos latinos para as línguas românicas e nos séculos
VIII e IX, para as línguas germânicas.
As primeiras
traduções do latim para as línguas vernáculas foram, em sua maioria de textos religiosos,
com destaque para a tradução anglo-saxã dos Salmos feita por Adelmo (c.
650-709). Apenas no século IX o Concílio de Tours dá a permissão para se
traduzir as homilias dos Padres para as línguas vernáculas, enquanto as
Sagradas Escrituras só virão a ser traduzidas inteiramente em vernáculo no
Renascimento. É importante ressaltar que as práticas medievais de tradução para
as línguas vernáculas continuaram sendo pautadas pela exegese, pelos
comentários, glosas e paráfrases. Esta foi sua característica básica, e apesar de
terem surgido importantes comentários acerca da atividade de traduzir por parte
de filósofos e tradutores, não houve na Idade Média uma reflexão mais profunda
e sistemática, muito menos o desenvolvimento de uma teoria da tradução. Isso
porque as línguas vernáculas que foram surgindo não tinham ainda uma autonomia
firmada em relação ao latim e a tradução, por mais que tenha se desenvolvido
como uma atividade, não possuía uma particularidade, mas se mesclava à prática
de escrita de glosas e comentários.
No entanto,
as soluções encontradas pelos tradutores medievais, em sua maioria, pautavam-se
no legado de São Jerônimo. Dele a Idade Média e os períodos seguintes herdaram
a fórmula non verbum pro verbo, sed sensum pro senso, que se tornou o
modelo de fidelidade textual tradutória, e não apenas uma opção do tradutor. Foi
então esta fórmula que fomentou e ajudou a desenvolver as teorias posteriores que
se pautaram pela manutenção do sentido, e com alegria finalizamos este breve
texto louvando o patrocínio deste grande santo, o Doctor Doctorum, que
deu à Igreja e a todo o mundo ocidental uma das mais colossais obras da
humanidade, e representando a transição da Antiguidade Clássica para a Idade Média cristã, ditou os rumos de toda uma cultura literária no ocidente.
Rogai por nós, São Jerônimo, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
[1] Vide a Carta LXX a Magnus, que
mostra o ponto de vista de São Jerônimo a respeito da utilidade das letras
humanas para a formação dos espíritos.
[2]
Todas os trechos da Carta de São
Jerônimo De Optimo Genere Interpretandi utilizadas como citação neste
texto são da tradução de Mauri Furlan (2019), para o Projeto Antologia da
Primeira Idade Média.
[3] Isto gerou a prática da paráfrase na
tradução medieval.
[4] Mesmo na tradução dos livros sagrados,
São Jerônimo recorre muitas vezes ao sentido, como é possível observar nos
prefácios aos livros de Judite, Tobias e Jó.
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