A partir da chegada dos romanos, o rio grego se bifurca entre o Oriente e o Ocidente. aquele em Constantinopla, este em Roma. Com a personalidade dos romanos, a mentalidade grega adquiriu uma forma mais objetiva e austera e abandonou um pouco até mesmo a abstração. O mundo romano se diferencia do grego justamente nesse aspecto de praticidade e simplicidade. Enquanto os gregos abstraíam a partir do pensamento os princípios espirituais da realidade e todas as suas propriedades, o mundo romano trouxe um aspecto mais prático de aplicação destes mesmos princípios. Roma assimila o Espírito Grego e o coloca em prática sobretudo nas instituições civis da res pública, dentre as quais a primeira é a família. Os patrícios são justamente aqueles cidadãos cujas famílias formaram a civitas romana. A plebe e os outros povos vão entrando nesta cidade romana ao assumir os mesmos princípios, como sociedades intermediárias ligadas ao Imperium Universale[2]. O imperador se coloca como um governante universal que leva cada povo, mantendo suas tradições e autoridades locais, à dignidade romana.
Veja o leitor que, dentro de um panorama em que o mundo grego foi ameaçado, diversas vezes, pelos impérios teocráticos orientais - como também Roma, nas guerras púnicas-, todo esse rio paralelo "do que poderia ter sido e não foi" vem à nossa mente: Há aí um arranjo de fatos que tornam o mundo cristão-latino o mais adequado ao desenvolvimento da civilização. Num exercício de especulação do multiverso, cujos princípios foram colocados no ensaio anterior, a ramificação aberta pela integração da Grécia ao império persa ou a conquista de Roma pelos cartagineses não nos traria um cenário muito feliz: Nos dois casos, haveria a aniquilação do homem em virtude de um estado divinizado, que inaugura um reinado de escravidão e desespero. As sociedades orientais da Mesopotâmia eram formadas por estados teocráticos, onde cada cidadão vivia sob o julgo da escravidão e da obediência servil. O que esses reinos tinham de grandiosos devido a seus grandes edifícios, tinham também de opressores da dignidade, em virtude dos sacrifícios humanos e da imensa casta de cidadãos que sustentam os luxos de um rei-deus. É a deturpação do princípio de autoridade.
Somente os gregos e os romanos poderiam preservar este tesouro, porque viam a autoridade como o princípio de ordenação da pólis. Não é uma ordem social através do esmagamento do homem, mas da elevação de sua dignidade, que somente em sociedade alcança a plenitude. Afinal a autoridade, como a própria palavra diz[3], tem como finalidade a elevação dos subordinados ao fim pelo qual aquela sociedade foi construída. Ele é encarnado pelo próprio governante, princípio de unificação de todo corpo social[4]. Enquanto os gregos compreenderam esse papel da pólis, os romanos o aplicou universalmente, abarcando em seu domínio todos os povos civilizados de então. A universalidade e praticidade dos romanos difundiram um princípio que a racionalidade e espírito contemplativo dos gregos perceberam na essência humana. É impossível não perceber nisso uma providência que encaminha a história a um ponto em que o Evangelho seja prontamente assimilado e tenha uma perfeitamente integração com os valores sociais vigentes.
Ao contemplar a ação da Providência na história, percebemos que ela age como um maestro numa sinfonia, que conduz cada músico ao fim último do concerto, a música bem tocada. A história humana é uma preparação à Encarnação. Deus só poderia se encarnar no momento em que todos os fatores fossem propícios para isso e dispostos por Ele mesmo. Cada agente da história estava ordenado a um fim que era o nascimento do filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele nasceu na plenitude dos tempos, como dito nas escrituras (Gl 4, 4). Este acontecimento primordial e a fundação da Igreja Católica pelo mesmo filho de Deus, a qual continuaria sua obra, só poderia ter acontecido no mundo romano[5] e não há no multiverso outra possibilidade senão essa. Qualquer outro arranjo teria sido péssimo para o evangelho e para a civilização. É neste cenário de universalidade romana que a Igreja substitui o imperador, chamado pontifex maximus, pelo sumo pontífice, o papa, e troca o fim natural do Imperium Universal pelo fim sobrenatural da salvação das almas. Todos os elementos estão dispostos ao surgimento do Ocidente: 1) Fé Cristã-Católica; 2) Princípio de Autoridade; 2) Língua Latina; 3) Austeridade Romana e, por fim, 4) Universalidade da Autoridade Espiritual.
Tudo pronto para o rio da história desaguar na foz medieval! Felizmente o multiverso não foi alterado pelos destruidores da ordem natural e a linha do tempo está estável. Na próxima semana, veremos a continuidade da linha do tempo na aurora da civilização cristã. Aguardo-te, leitor!
__________________________
[1] "'Quanto a ti, ó Pelida, não procures à força conflitos com o rei,/ pois não é honra qualquer a de um rei dententor do cetro,/ a quem Zeus concedeu a glória./ Embora tu sejas o mais forte, pois é uma deusa que tens por mãe/ ele é mais poderoso, uma vez que reina sobre muitos mais.'" ( Ilíada, Canto I, v. 276-280. Trad. Frederico Lourenço)
[2] Já se falava do destino de soberania político-religiosa de Roma mesmo antes do império: "Antes que nascesse Virgílio, a lenda de um futuro imperial inspirou nos romanos a convicção de futuro extraordinário" (BOUCHET, Calderón. Pax Romana. [1984]. p. 7. Tradução Nossa.). Muitos historiadores, como Grimal, especulam que essa crença surgiu do contato com os gregos e da admiração às suas epopeias (Ibid. p.8). Há nisso mais de interpretação que de dado documental, porém vale salientar que é antiga a crença nessa vocação de soberania universal dos romanos.
[3] Autoridade vem do vocábulo latino auctor (autor), que, por sua vez, deriva do verbo augeo, augere (elevar). A autoridade eleva os seus súditos e lhes confere dignidade por meio da sabedoria. É uma participação de conhecimento que o mestre confere aos que lhes estão subordinados.
[4] "Nenhuma forma de vida social pode existir entre várias outras sem um chefe que vele pelo bem comum. [...] É por isso que Aristóteles afirma no princípio da sua Política que, onde quer que muitos estejam ordenados para um fim único, sempre se encontrará um princípio único e indicador. [...] Quando se diz sociedade, se diz ordenação de todos os membros para um fim único: o bem comum de todos. Por conseguinte, em toda sociedade, deve haver alguém que a governe." (DEVILLERS, Pe. Guilherme. Política Cristã. 2019. p. 86-87. Grifos Nossos)
[5] LLORCA, Bernardino et al. Historia de la Iglesia Católica. 2009. Madrid: BAC. p. 3.
0 Comentários
Obrigado por enviar seu feedback!
O Medievalitas agradece.