A DecadĂȘncia do Ideal de Cavalaria e o Ocaso do Ocidente

Dom Quixote e Sancho. Cesare-Auguste Detti (1848-1914). Óleo sobre tela.

Quem estĂĄ acompanhando o blog e tem passeado pelos artigos, sabe o eminente interesse literĂĄrio que impulsionou sua criação. Aqui HistĂłria e Literatura se interpenetram para remontar Ă s origens da Civilização Ocidental. Logo em nosso primeiro texto, os mais atentos jĂĄ observam que a Idade MĂ©dia nĂŁo Ă© o fim mas o meio pelo qual se abarca uma ideia bem mais ampla: a essĂȘncia romana do Ocidente. Romanismo ou Romanidade, no dizer de Monsenhor Marcel Lefebvre[1], nĂŁo existe sem o Catolicismo. A Igreja funciona como um princĂ­pio espiritual de unidade que liga todos os elementos materiais da civilização romana. Sem ela, esta imensa RepĂșblica jĂĄ teria sumido na histĂłria. Ao atacar a Igreja, a sociedade caminha para a anomia religiosa e polĂ­tica. Este Ă© precisamente o estĂĄgio civilizacional em que estamos. 

Todo este conteĂșdo que se encerra nas palavras Romanidade, Civilização, Ocidente e Cristandade, usadas constantemente por aqui, vem, desde o sĂ©culo XIV, sendo atacado aos poucos por forças das mais diversas origens. A primeira que conseguiu um resultado mais expressivo em solapar as bases deste mundo foi o Humanismo. Inaugurado por poetas e artistas italianos do calibre de um Bocaccio ou de um Dante Alighieri, foi em outra regiĂŁo que se manifestou mais fortemente no corpo social. Na França, na regiĂŁo da Borgonha, e nos Flandres, regiĂŁo chamada hoje de PaĂ­ses Baixos, encontramos sua presença na elite polĂ­tica. Na obra prima historiogrĂĄfica de Johan Huizinga[2], O Outono da Idade MĂ©dia,  vĂȘ-se que cada aspecto da sociedade borguinhĂŁ, sobretudo sua elite, foi influenciado por um novo espĂ­rito naturalista. Observa-se isto na substituição - ou atĂ© deturpação - de costumes medievais para dar lugar a novos ritos sociais, ou atĂ© na permanĂȘncia de instituiçÔes sociais antigas, as quais, porĂ©m, estĂŁo despojadas de toda substĂąncia espiritual. O inĂ­cio da ruĂ­na da Civilização CristĂŁ Latina gera um homem Ă©brio de si mesmo e sedento de fantasia, como Ă© o nobre borguinhĂŁo. 

O livro, de maneira geral, chama a atenção por sua prosa bem escrita, prato cheio para os apreciadores dessa modalidade e para os bons e os maus imitadores, como eu, dos grandes ensaĂ­stas. É precisamente esse o tom da obra, cada capĂ­tulo tem aquele gosto delicioso de ensaio feito sem pretensĂŁo mas, ao mesmo tempo, cheio de profundidade. Uma escrita leve mas de argumentação rigorosa. 

Pois bem, neste livro hĂĄ um capĂ­tulo especial para entender essa mudança social operada no final da Idade MĂ©dia: o capĂ­tulo 4, O Ideal de Cavalaria. Mesmo antes, nos 3 primeiros capĂ­tulos, ele nos ambienta em um mundo de luxo e ostentação na corte dos governantes da Borgonha. Predominava mais a aparĂȘncia de elegĂąncia e a formalidade dos costumes do que a verdadeira nobreza, que se encontra na prĂĄtica das virtudes. Quando se vĂȘ, na Canção de Rolando, a reuniĂŁo de Carlos Magno com os outros nobres, cada um chefe de algum destacamento do exĂ©rcito ou governante de uma certa porção do territĂłrio do Sacro-ImpĂ©rio, para julgar Ganelon pelo assassinato de Rolando, salta aos olhos o respeito para com a justiça e a obrigação em dar a um cidadĂŁo, mesmo que malfeitor, o devido processo legal. Os modos Ă  mesa ou a pompa de uma procissĂŁo de entrada era algo que nem era tĂŁo importante ou nem aparecia nos relatos. AliĂĄs, na sociedade de Carlos magno, valia mais o espĂ­rito que a carne. Óbvio que certamente havia desvios e corrupçÔes, mas o ideal de nobreza era algo bem orgĂąnico e espiritual, e, embora elevado, era posto ao alcance de todos, pois se nĂŁo era possĂ­vel imitar os nobres nas suas posses e riquezas, era possĂ­vel se assemelhar a eles ou atĂ© superĂĄ-los pelo cultivo das virtudes.

O nobre era conhecido por sua gentileza e fibra moral, sĂĄbios para aplacar sua sede de vingança e dar atĂ© a um malfeitor da estirpe de Ganelon um julgamento justo. Na Borgonha, encontra-se outro tipo de nobre, que, diferente dos anteriores, destaca-se pela gala e pompa. A formalidade da corte de um Felipe III (1396-1467), o Bom, ou a vaidade de um Carlos I (1433-1477), o TemerĂĄrio, sucessor daquele como duque da Borgonha, impressionam mais que a nobreza de carĂĄter de ambos ou a força dos braços. O afĂŁ deste Ășltimo de se comparar aos herĂłis das epopeias do passado era tanto que ele fazia questĂŁo de analisar os poemas escritos sobre ele, para ver se estava pintado com as devidas cores[3]. Tudo isto pela afetação de ser lembrado pela posteridade.

O mundo gerado pelo Humanismo a partir das instituiçÔes medievais nĂŁo Ă© um mundo feio artisticamente. HĂĄ ainda uma certa ordem, mas esta puramente estĂ©tica. Predomina um colorido e encanta pela beleza das formalidades, mas se limita a isso, a puro encanto e afetação. A hierarquia social, as ordens da cavalaria e a nobreza nĂŁo tĂȘm mais substĂąncia orgĂąnica. Tudo Ă© artificial. A vida tem que ser vivida da forma mais bela e idĂ­lica possĂ­vel. É como se se buscasse tornar um sonho real. Muito diferente do ideal da cavalaria medieval, em que os cavaleiros tinham preocupaçÔes menos requintadas, aqui busca-se preencher o lugar do heroĂ­smo com a afetação de beleza:
"As formas da vida sĂŁo recriadas em formas mais artĂ­sticas. Mas nĂŁo apenas nas obras de arte em si se expressa o sonho de uma vida mais bela, pois ela quer preencher a vida com beleza e a sociedade com jogos e formas. E Ă© justamente aqui que se fazem as maiores exigĂȘncias Ă  arte de viver das pessoas, exigĂȘncias que somente podem ser satisfeitas por uma elite, em vida lĂșdica e artificiosa." (HUIZINGA, 2010. p. 57)

Anunciação. Petrus Cristus (1410-1475). AtĂ© o quarto de uma parturiente deve oferecer pompa e distinção. Numa imagem que deveria direcionar Ă  oração e vida espiritual, a anunciação do Arcanjo sĂŁo Gabriel Ă  SS. Virgem Maria, o artista inverte o olhar do ceĂș para uma vida mais fantasiosa aqui na terra. O resultado Ă© uma imagem cheia de cores e elementos de requinte demasiado: "Aqui as cores tem um significado. O verde, que atĂ© o sĂ©culo XIX era uma cor comum para o berço burguĂȘs, no sĂ©culo XV era prerrogativa de rainhas e princesas." (2010, P.77) 


NĂŁo somente uma noção social orgĂąnica advĂ©m da cavalaria medieval mas tambĂ©m o Ă­ntimo vĂ­nculo do cavaleiro com a fĂ© que ele defende. Ele nĂŁo Ă© somente um nobre que deve ter virtudes que sirvam Ă  boa ordenação social e transmita aos outros o exemplo, Ă© tambĂ©m um soldado de Cristo, um representante, neste mundo, da milĂ­cia celeste.  PorĂ©m, no ocaso medieval, atĂ© mesmo essa substĂąncia religiosa do cavaleiro Ă© deturpada e transformada em pantomima. A cerimĂŽnia de sagração de reis e nobres Ă©, praticamente, um sacramento a mais na Igreja, cheio de pompas e vaidades. PorĂ©m, esse sacramental, longe de trazer uma elevação espiritual, como se vĂȘ na Literatura anterior, na verdade Ă© mais uma ocasiĂŁo de alimentar os sentidos e viver uma vida de sonhos, que nada tem de romana ou cristĂŁ. À medida que os nobres se afastavam da fĂ©, mais queriam se aproximar da beleza dos templos catĂłlicos e competir em cerimĂŽnias requintadas. Uma casca bela e sofisticada, o interior vazio da verdadeira vida espiritual.

O cristianismo se adequou Ă  romanidade por causa do senso dever e o direcionou ao alto. Sursum corda. O cavaleiro medieval Ă© a junção da força germĂąnica com o senso de dever romano, colocados a serviço de Deus. Na decadĂȘncia, todo esse conteĂșdo perde o seu brilho e a cavalaria vira uma pantomima romĂąntica de reis, rainhas e princesas. Humaniza-se a religiĂŁo e diviniza-se a humanidade. Nos livros, essa pantomima tinha seu apelo nas novelas de cavalaria, mas como a vida real nĂŁo Ă© sĂł poesia, a pompa sem substĂąncia cansa e leva ao pessimismo. O sĂ©culo XV Ă© justamente o tempo do rebuscamento artĂ­stico, como tambĂ©m Ă© o da melancolia e desespero. 
A Virgem e a Criança. Carlo Crivelli (1430-1490). Óleo sobre tela.


A decadĂȘncia da cavalaria Ă© sintoma da decadĂȘncia da Civilização Latina Medieval. Sua mais nobre instituição perdeu fĂŽlego e degenerou-se. Justamente essa situação vai ser pano de fundo de uma das mais belas histĂłrias criadas, D. Quixote de La Mancha. A partir do prĂłximo ensaio, vamos observar em que medida o D. Quixote, longe de ser uma pilhĂ©ria com os cavaleiros medievais, configura-se como um resgate da Civilização Ocidental duramente atacada pelos modernos e humanistas do sĂ©culo XIV e XV. A partir da visĂŁo romĂąntica dos cavaleiros dada pelos livros do sĂ©culo XV, o protagonista vai alĂ©m e ataca os novos valores do Humanismo. Tentando tornar-se um cavaleiro romĂąntico, figura, na verdade, entre os valorosos combatentes de outrora. A substĂąncia da obra Ă© o resgate da Civilização. O texto atĂ© aqui foi apenas uma introdução. Foi importante para  que o leitor entenda a importĂąncia do Ideal de Cavalaria e a tristeza, para o Ocidente, de sua perda, a qual causou consequĂȘncias atĂ© nos dias atuais. Estamos nĂłs hoje, quais d. quixotes, atĂŽnitos nesse mundo de cores vazias, lutando contra moinhos de vento pessimistas e defendendo valores que sĂŁo apenas causa de deboche dos contemporĂąneos. Mas, Ăąnimo!, os ridĂ­culos e sonhadores sĂŁo eles, filhos que sĂŁo do sĂ©culo XV.  
  
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[1] Este preclaro defensor da fĂ©, um homem que, sozinho, se opĂŽs Ă  degeneração espiritual do mundo, estabelece a "Romanidade", a identidade romana da Igreja - e do mundo por ela construĂ­do-  como um pilar sine qua non para manter a ordem temporal e espiritual da sociedade. Vejamos o que ele diz: 
"A Romanidade nĂŁo Ă© uma palavra vĂŁ. A lĂ­ngua Latina Ă© um exemplo importante. Ela levou a expressĂŁo da fĂ© e do culto catĂłlico atĂ© os confins do mundo. E os povos convertidos eram firmes em, nessa lĂ­ngua, cantar sua fĂ©, sĂ­mbolo real da unidade da fĂ© catĂłlica.

Os cismas e as heresias começaram frequentemente por uma ruptura com a Romanidade [...]." ( LEFEBVRE, Mons Marcel. A Vida Espiritual Segundo SĂŁo TomĂĄs de Aquino na Suma TeolĂłgica. Ed. PermanĂȘncia: 2011. P. 110. Grifos Meus)

[2] HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. Cosac Naify: São Paulo. 2010.

[3] Id. p.102-103






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