Feudalidade
A imagem da sociedade feudal é
muito vívida na Canção, afinal sua forma foi adquirida no século XI. Os homens
ali descritos são cavaleiros, não guerreiros francos do século VIII, quando o
uso da cavalaria ainda era incipiente.
Não há como descrever um quadro
completo daquela sociedade em tão curto texto. Para contextualizar a Canção,
pode-se dizer que homem feudal estava inserido em uma rede de relações pessoais
baseadas no sangue ou no juramento. Ninguém estava completamente isolado: um
indivíduo pertencia a uma família, a uma aldeia, a uma casa senhorial. A
própria figura do cavaleiro errante, tão presente no imaginário romântico, não
se enquadra na realidade medieval. Segundo o medievalista Georges Duby:
“Não existia andança solitária a não ser na ficção romanesca (...) A
corte espera o retorno de todos os Lancelotes, e os cavaleiros das lendas, como
Erec, sonham durante suas provações em voltar ao foyer, ou então, caso ainda
não estivessem estabelecidos, ingressar sem demora num confortável convívio
doméstico” (tradução livre, ver Guillaume le
Maréchal ou le meilleur Chevalier du Monde, ed. Fayard).
Os cavaleiros são ligados por um
forte laço de lealdade aos seus senhores e também aos seus companheiros.
Rolando e Olivier, seja na alegria, seja num momento de discussão, nunca deixam
de se tratar com cortesia (Bel sire, Chers
cumpainz, por exemplo): ambos são
exemplos do Companionage.
Às vezes, o filho de um vassalo
recebia sua formação na casa do senhor, juntamente com os filhos deste. Dois
cavaleiros saídos da casa de um mesmo Senhor, armados juntos no mesmo dia,
tornavam-se companheiros, faziam parte da mesma meinie e desenvolviam amizade duradoura. Na Canção de Rolando,
Carlos tem seus bacheliers, jovens
cavaleiros criados e armados em sua casa, gente de sua linhagem cavalheiresca.
O vínculo feudal era de lealdade
e serviço, não propriamente fundiário: o ato de dar as mãos colocando-as entre
as do senhor, vinculava-lhe o vassalo, tornando-o “homem” (fr. homme, al. Mann,
lat. homo) de alguém. Em geral, seguia-se o juramento, feito sobre os
Evangelhos ou sobre as relíquias de um santo. A natureza do serviço variava,
desde acompanhar o senhor na guerra até serviços mais modestos como guardar uma
torre ou dar-lhe pousada quando precisasse. Havia a obrigação de conselho. O
serviço militar como obrigação principal do vassalo se consolida ao longo do
século X, e no século XI a palavra miles (lat.
guerreiro, combatente) já era sinônimo de vassalo: também a palavra “homem” ou
“amigo” era utilizada.
O vassalo estava sob a proteção
do senhor, comparecia à sua Cour
(corte) quando convocado em Conselho, recebia presentes como moedas, armas e
cavalos. Caso fosse um jovem cavaleiro sem recursos, podia morar junto ao seu
senhor, compondo a sua Casa (meinie).
Na Canção, Carlos lamenta a perda de milhares de jovens cavaleiros (bacheliers) criados e saídos de sua meinie. Os bacheliers eram os jovens cavaleiros sem bens e ainda não casados,
que não podiam outra coisa que servir à sua linhagem familiar ou ao seu senhor.
Il n’est pas ami entier qui fasse defaut à son seigneur dans le bésoin (Ninguém é
vassalo verdadeiro se na necessidade não socorre o seu senhor): esta frase foi
dita pelo grande Guilherme Marechal, modelo de cavaleiro, sempre fiel aos seus
senhores, e protetor do jovem rei Henrique III da Inglaterra quando este ainda
era uma criança. Neste sentido, Rolando descreve o vassalo ideal:
Pur sun seignor deit hom susfrir
destreiz
E endurer granz chalz e granz
freis
Sin deit hom perdre e del quir e
del peil.
Or guart chascuns que granz colps
(l')[i] empleit,
Que malvaise cançun de nus
chantet ne seit!
Por seu senhor um homem deve sofrer perigos
E suportar grande calor e frio
Assim deve o vassalo arriscar pele e cabelos.
Ora cada um trate de desferir bons golpes
Que sobre nós não se cantem canções de deboche!
Às vezes, o serviço ao senhor
importava a concessão de alguma coisa ao vassalo, um Benefício (lat. Beneficium), que podia ser terra, mas
também direitos sobre parte de uma cidade, direito a recolher determinado
pedágio numa ponte; o costume e a convenção diriam. Até mendigos podiam ter
seus feudos, como a sopa diária junto
a uma igreja e o direito de mendigar em determinados locais.
Nesse mundo de relações
intrincadas, ninguém era senhor absoluto de tudo, ninguém agia sozinho sem que
seus atos atingissem também sua família ou sua rede de senhores e vassalos:
“O nobre desse tempo nunca age sem o concurso de sua parentela; na
guerra, no pleito judiciário, está sempre cercado de seus “amigos carnais”, que
lhe dão a mão e a quem deve ajudar antes do mais querido de seus senhores” (ver
Édouard Perroy, Georges Duby et al., em vol. VII de História Geral da
Civilizações – Idade Média, ed. Bertrand Brasil).
Por isso, quando Ganelon é
julgado, pessoas de sua família e vassalos se apresentam para apoiá-lo e jurar
por ele e até, no caso de seu vassalo Pinabel, combater em sua defesa num duelo
judiciário; condenado Ganelon, mais de trinta pessoas relacionadas a ele são
igualmente executadas. Essa execução coletiva não era praticada e sua inserção
na Canção pode ter sido um exagero motivado por desejo de admoestar das graves consequências
de trair um juramento.
Carlos é um rei da época feudal,
um grande senhor que detém a realeza, mas que reúne frequentemente o seu
Conselho de Barões. Era costume reunir a corte**, isto é, seus vassalos e
outros próximos para tratar de algo importante. “Conselho” era uma das
obrigações do vassalo:
“No tocante à obrigação de conselho, é mister relacioná-lo com um
costume peculiar às sociedades medievais, com o sentimento tenaz de que o chefe
do grupo não pode tomar uma decisão grave, proferir uma sentença, decidir da
sorte de seus bens, sem submeter a questão a seus homens e ouvir-lhes a
opinião” (ver Édouard Perroy et al., já citado).
“Meus senhores, pela fé que me deveis vos conjuro, retirai-vos e decidi
por um julgamento inatacável o que convém responder a Englebert por um lado e
aos monges por outro” (Palavras de Carlos, conde de Flandres, quando em
1122 convocou os seus vassalos para que o ajudassem a decidir uma causa. Apud.
GANSHOF, F.L. O que é Feudalismo?)
Assim era costume, na Páscoa ou
no Natal, um rei ou um grande senhor estar sempre num castelo ou numa cidade
para as festividades, época de reunir vassalos, reatar velhos laços, tomar
conselho, distribuir presentes e armar jovens cavaleiros, ocasião em que havia
banquetes no salão e, quem sabe, declamação de canções como a de Rolando. Por
exemplo, foi nas festividades de Natal do ano 1145 que o rei Luis VII, em
Bourges, recebeu vassalos para saber sua opinião sobre uma nova Cruzada.
Na Canção, Carlos decide e
governa, mas há certas ações que ele não pode realizar por sua única vontade,
como condenar à morte o traidor Ganelon: a assembleia dos Barões deve apoiar a
condenação e, no momento em que um vassalo de Ganelon se apresenta para defendê-lo,
os grandes temem prosseguir com a acusação por receio de enfrentar um guerreiro
formidável como Pinabel de Sorence. Carlos pouco teria podido fazer se um jovem
cavaleiro chamado Thierry não se apresentasse e derrotasse Pinabel, garantindo
a condenação de Ganelon. O duelo judiciário, de origem germânica, ainda existia
na Europa medieval e devagar caiu em desuso após o século XIII.
Ganelon, ao se vingar de Rolando
pelo que tenha considerado uma ofensa, está usando da Faida (em alemão Fehde; inglês Feud), que é o direito de vingança privada originário dos
germânicos. Contudo, ele o faz de modo indireto, pois um uso ostensivo desse
direito implicaria uma guerra aberta que envolveria todos os seus amigos e
parentes. Lemos na laisse 272:
Dist Guenelon: «Fel seie se jol
ceil!
Rollant me forfist en or et en aveir,
Pur que jo quis sa mort e sun
destreit;
Mais traïsun nule n'en i otrei.»
Diz Ganelon: “desonra teria se o
negasse!
Rolando me prejudicou em meus
bens,
Por que busquei sua morte e
desgraça,
Mas nisso não confesso qualquer
traição.
E adiante Ganelon diz: “Venget m'en sui, mais n'i ad traïsun”
(Vinguei-me, mas nisso não há traição). Ganelon tenta se defender invocando o
direito de vingança privada, ao mesmo tempo em que tenta convencer a assembleia
de que não traiu ao seu Senhor, Carlos. De fato, sutil como é, Ganelon em
nenhum momento ataca diretamente o Rei e, mesmo quando conspira com os mouros,
ele só lhe tece elogios, dando a entender que pretende unicamente a morte de
Rolando.
Tant nel vos sai ne preiser ne loer
Que plus n'i ad d'onur e de bontet.
Sa grant valor, kil purreit acunter?
Não saberia
estimá-lo nem louvá-lo à monta,
Pois em
ninguém há mais bondade ou honra,
De seu
grande valor, quem poderia dar conta?
De fato, muitas vezes era difícil
punir um vassalo caso não ficasse demonstrado descumprimento dos deveres de
ajuda e conselho, mas fica claro que Ganelon cometeu felonia, pois sua vingança
prejudicou diretamente o seu senhor.
Há quem interprete o julgamento
de Ganelon – e até mesmo a obra – como um simbolismo político: a ascensão de
uma monarquia mais centralizada sobre a antiga ordem feudal de direito privado
e, portanto, de vingança privada. Segundo essa interpretação, a morte de
Ganelon representa a morte da aristocracia fundiária e da solidariedade
familiar, assim como a morte de Rolando e dos Doze Pares representa a queda da
aristocracia da corte, e sobre ambas ergue-se uma ordem monárquica centralizada
simbolizada por Carlos Magno.
Não vejo como ser assim, pois o
que se mostra, na Canção, é a Justiça tradicional, costumeira, baronial,
funcionando com toda a sua força: Carlos não destrói a justiça “feudal”, mas lhe
está adstrito, pois nada pode fazer contra Ganelon sem a aprovação da
Assembléia ou sem que um campeão defenda a sua causa em duelo.
O que vemos é o procedimento
judiciário antigo, anterior à verdadeira ascensão de monarquias
centralizadoras. Na época em que a Canção foi cantada e escrita, os reis de
França mal conseguiam impor autoridade sobre seus castelões desobedientes – e
isso no pequeno território da Île-de-France.
Não creio que esta Canção apresente um simbolismo de mudança de ordem política,
que somente acontecerá após dois séculos – o tema da obra é maior do que isso.
Por fim, vemos a Feudalidade no
próprio ato de Rolando ao estender a sua luva a Deus, no momento de sua morte:
para o homem daquela época, Deus era o maior dos Senhores; a vida era o feudo
que possibilitava o Seu serviço. Ao entregar a luva, Rolando usa de um símbolo
comum à época em que sinais sensíveis se sobrepunham a formas contratuais
escritas: a luva é o símbolo da vida, concedida por Deus para servi-Lo.
Cristianismo e Martírio
O tema da Canção de Rolando é
apenas a versão mítica da batalha de Roncesvalles, feita para entreter
audiências em salões, estradas e festas urbanas? É um drama que trata de
orgulho e traição? Amizade e inveja? Esses elementos estão presentes na obra,
mas ela seria menor do que é se seu tema central não os excedesse em grandeza.
A querela de Ganelon e Rolando, a
conspiração do primeiro, a destruição da retaguarda com a consequente morte de
Rolando e de seus companheiros, a vingança de Carlos sobre os infiéis, o
julgamento e a execução de Ganelon, tudo isso é o pano de fundo de algo maior,
que é o sacrifício e a disposição de servir a Cristo de maneira completa.
O mestre Otto Maria Carpeaux
afirma, em sua História da Literatura Ocidental, que a Canção de Rolando ainda
é uma poesia bárbara e pouco cristã, de uma época em que os franceses estavam
pouco cristianizados, e que ela carece de sentimentos delicados e de psicologia.
Com o enorme respeito que devoto
ao mestre, ouso discordar: a psicologia é bem trabalhada (vide, por exemplo, o
vilão Ganelon) e não faltam sentimentos delicados: quando Carlos oferece metade
de seu exército a Rolando, para que ele fique na retaguarda em segurança, como
não se lembrar de um pai que oferece o seu carro, melhor e mais seguro, para o
filho que vai fazer tomar o rumo de uma estrada? Sem falar de uma das cenas
mais comoventes da Canção, na laisse
149, que deixo à apreciação do leitor.
Para além, a Canção de Rolando é
um poema cristão, católico até as suas entranhas, e não foi escrito no contexto
barbárico de uma França Merovíngia, mas numa França plenamente cristã. Não foi
escrito na França de rainhas megeras como Fredegunda de Nêustria e Brunilda da
Austrásia, e dos sanguinários herdeiros de Clóvis. Foi escrito na França de São
Bernardo e de Godofredo de Bulhão, na França da Ordem de Cluny, à sombra de catedrais como a de Chartres ou de charmosas igrejinhas românicas.
O autor, Turoldus, pode não ter
sido um alto clérigo; o seu cristianismo é simples, mas ortodoxo e profundo:
não há grandes elaborações teológicas, não há arroubos místicos, mas o
cristianismo não é apagado como na Nibelungenlied
ou velado como em Beowulf – sim, Beowulf é cristão.
Desde o início, é por Deus que os
francos lutam; enquanto a sua atitude é de combate intransigente, eles vencem.
O contrário os leva ao desastre: quando se decide contemporizar com o infiel,
cai-se na armadilha a que às vezes conduz o excesso de prudência humana. Quando
Carlos recebe a mensagem de Marsile, sua atitude deveria ser a mesma que ele
demonstra no final: “nunca aos pagãos mostrarei amizade ou amor”.
Contudo, no Conselho, a voz de
Rolando, que representa a atitude pura e intransigente que o cristão deve ter
face ao mal, acaba silenciada pelas vozes prudentes e diplomáticas de Ganelon e
Naïmon. Excesso de prudência humana, sem a visão sobrenatural, conduz a
infortúnios. Quando a Cristandade deixa de estar no centro, corre-se o risco de
ser levado pelos ventos do mundo e servir a propósitos ocultos de que nem se
cogita: ao preferir diplomacia à Cristandade, os cristãos do poema acabaram,
sem saber, servindo aos propósitos de um traidor.
Antes da Batalha, o Arcebispo
Turpin prega um sermão aos cavaleiros. O sermão é simples, sem grandes
floreios, como tudo neste poema, mas seu conteúdo é plenamente cristão:
«Seignurs baruns, Carles nus
laissat ci;
Pur nostre rei devum nus ben
murir.
Chrestientet aidez a sustenir!
Bataille avrez, vos en estes tuz
fiz,
Kar a voz oilz veez les
Sarrazins.
Clamez vos culpes, si preiez Deu
mercit!
Asoldrai vos pur voz anmes
guarir.
Se vos murez, esterez seinz
martirs,
Sieges avrez el greignor pareïs.»
Franceis de[s]cendent, a tere se
sunt mis,
E l'arcevesque de Deu les beneïst:
Par penitence les cumandet a
ferir.
Senhores Barões, Carlos nos
deixou aqui;
Por nosso rei bem devemos morrer.
Ajudai a defender a Cristandade!
Tereis batalha, disto estai
seguros,
Porque diante de vossos olhos
estão os sarracenos.
Confessai as vossas culpas, e
pedi misericórdia a Deus.
Absolver-vos-ei e pôr-vos-ei as
almas em segurança.
Se morrerdes, sereis santos
mártires,
Grande assento no Paraíso tereis”
Os franceses desmontam, põem-se
de joelhos,
O arcebispo os absolve e abençoa.
Como penitência, ordena que
ataquem.
Turpin é assertivo: os cavaleiros
têm um dever para com seu rei e para com a Cristandade; todos devem confessar
seus pecados e serem absolvidos; se morrerem, irão para o Céu. A penitência
imposta não é rezar, mas lutar. Tudo aparentemente simplório, mas com a
Cristandade em perigo, não é hora de elaborações teológicas***, e sim de se
lembrar do essencial; e quando a Cristandade precisa ser defendida em campo,
rezar é lutar.
Deus está presente na obra
influenciando as ações dos personagens, mas não como um Deus ex machina, que vem resolver uma
situação irresolúvel e fulminar os infiéis com raios celestes. É por terem a Fé
(no sentido teológico de adesão à verdade revelada) que os heróis lutam,
cooperando com atos para aquilo que Deus deseja deles: como não se lembrar de
Santa Joana d’Arc, em sua sábia simplicidade, dizendo “os homens guerrearão e
Deus lhes dará a vitória”?
O cristianismo da obra é forte,
não é sentimental: a penitência que o arcebispo impõe é a de desferir golpes no
invasor; quando, no duelo com Baligante, Carlos é ferido e vacila, um anjo lhe
diz: “E agora, grande rei?”, uma reprimenda irônica pela fraqueza momentânea, e
que talvez um papa tenha ouvido de Santa Catarina de Siena, ou um Delfim de
França de Santa Joana d’Arc.
Percebemos que o ethos desses cavaleiros é muito
diferente daquele presente em sagas nórdicas ou na Nibelungenlied (escrita não muito depois), onde os guerreiros lutam
por mera virtude guerreira e ao morrerem parecem meramente cumprir seu destino;
não confessam seus pecados, nem encomendam suas almas a Deus. Para eles, lutar
é virtuoso mesmo quando o seu lado é iníquo; no banquete do rei Etzel, o ímpio Hagen
mata um príncipe desnecessariamente, iniciando o combate: a glória está em
guerrear com os seus e morrer aceitando seu destino, e neste ponto estou de
acordo com Carpeaux, quando comenta a destruição final dos Nibelungos, que nas palavras
do mesmo mestre “morrem com heroísmo, mas um heroísmo sombrio”.
Mas é diferente a Canção de
Rolando: ali, não temos guerreiros nórdicos semibárbaros, mas Chevaliers, cavaleiros cristãos guiados
por um código de conduta elevadíssimo e que manejam suas espadas e lanças por
um ideal superior ao de um viking. Segundo o medievalista belga F. L Ganshof,
somente o Japão samurai teria algo de comparável à sociedade feudal europeia
dos séculos X, XI e XII.
As mortes de Rolando, Olivier e
Turpin, por exemplo, são mortes de cristãos, que sabem que sua vida eterna será
junto a Deus e aos santos, e não num salão lutando e bebendo hidromel. Todos
eles estão cientes de que o Paraíso é a recompensa pelo serviço a algo maior.
Eles morrem rezando. Lendo as estrofes de suas mortes, percebemos que bem
lembram o texto da antífona In Paradisum,
cantada em nossos funerais.
E aqui voltamos ao herói que dá
nome ao poema. Rolando é um herói cristão, sacrificial, cujo objetivo não é a
glória terrena, mas o céu. Antes de a batalha começar, duas vezes Rolando
descreve as características do vassalo ideal:
Pur sun seignur deit hom
susfrir granz mals
E endurer e forz freiz e granz chalz,
Sin deit hom perdre del sanc e de la char
Por seu senhor deve um homem
sofrer grandes males,
Suportar frio e calor,
Deve o homem perder sangue e
carne.
Rolando descreve o sacrifício que
um fiel vassalo deve ao seu senhor, mas para um cristão, esse sacrifício ainda
é mais devido a Deus. Rolando, ao não soar a sua trombeta e pedir ajuda, estava
adiando o seu toque para o momento certo, em que o seu eco anunciaria o
sacrifício.
Pode-se pensar que Rolando esteja
tomado pela hybris, pelo orgulho cego
que alguns heróis têm e que os leva à perdição. Num primeiro momento, parece
assim:
(...) Jo fereie que fols!
En dulce France en perdreie mun los”.
“Se assim o fizesse [soar a
trombeta de ajuda], na doce França perderia meu renome”.
Contudo, Rolando, ao não pedir
ajuda, está a demonstrar uma prontidão para o sacrifício, pois este é o seu
objetivo. Ele não deseja ganhar glória, renome, los. Ele já o tem. E se no começo ele se preocupa em não perder a
sua honra e em não envergonhar a Douce
France, esse suposto orgulho se transforma facilmente em disposição para o
sacrifício. Ele não me parece tomado de hybris,
não é a sua cólera que está presente na obra.
Rolando, como dito acima,
representa a disposição sacrificial e a intransigência cristã face ao erro, tal
como ele o demonstra de modo claro no começo da batalha, quando grita: Paien unt tort e chrestiens unt dreit
(os pagãos estão errados, os cristãos estão certos). Esse ponto de vista foi
vencido no Conselho e o resultado é o desastre de Roncesvalles; mas o seu
sacrifício recoloca as coisas na perspectiva correta: as máscaras caem, Ganelon
é reconhecido como um vil traidor e todos se dão conta de que jamais deveriam
ter confiado nos mouros.
A disposição de Rolando e dos
doze pares para o martírio já está posta desde o sermão inicial do arcebispo e
o grito de guerra dos franceses “Munjoie”
é o seu prenúncio: Montjoie Saint-Denis
significa a colina em que São Dionisio foi martirizado, em Paris. As espadas
dos guerreiros tinham relíquias daquele santo e de outros mártires. O grito ”Munjoie”, ecoado várias vezes no poema,
é mais do que um grito de guerra para dar coragem ao guerreiro e intimidar o
inimigo: é sinal de disposição interior para o sacrifício. Não é por acaso que
esse grito aos poucos vai ecoando da boca dos que estão prestes a morrer (ver
nas referências finais, o artigo de Robert Rois).
Quando Rolando finalmente soa sua
trombeta, já não pede ajuda, mas anuncia a sua morte. Naquele momento, quando
só restavam sessenta cristãos ainda vivos, soar a trombeta não serviria ao
propósito de obter ajuda: Carlos não chegaria a tempo. O triplo toque ganha nova
conotação: deixa de ser imperativo (venham nos ajudar) ou desafiante, e passa a
ser anunciador de um sacrifício (sobre as significações da trombeta nesta obra,
ver Oliphant and Roland’s Sacrificial Death, referências abaixo).
Com efeito, demorei um tempo para
perceber que havia algo de sacrificial na morte de Rolando e que ela era
diferente. A cena de sua morte é religiosa, é a alma de um mártir indo para o
Céu. E por acaso lembrei-me de que o toque de trombeta acompanhava os
sacrifícios no Antigo Testamento, como podemos ler em Num 10, 10: “Tocareis as
trombetas, oferecendo os holocaustos e as hóstias pacíficas, a fim de que o
vosso Deus se lembre de vós”.
E é nesta cena sagrada que
Ganelon revela mais uma vez a sua natureza perversa: ao ouvir a trombeta, ele,
sabendo que Rolando e seus companheiros estavam morrendo, lança um deboche
sobre aquele toque, dizendo que não era nada e que provavelmente Rolando o
estaria soando por brincadeira ou para exibir-se. Ao banalizar o anúncio do
martírio, Ganelon age como um profanador, conspurcando a cena sacrificial com
deboche e mostrando o seu lado mais sinistro.
O martírio se anuncia, o herói
morrerá e dará o exemplo a todos os cristãos. O seu sacrifício reordena as
coisas: ao ouvir o triplo toque, Carlos percebe que Ganelon o traiu e o põe em
correntes; ao mesmo tempo, dá meia volta com todo o seu exército e compreende
que jamais deveria ter baixado sua guarda e transigido com os inimigos da
Cristandade.
A partir de agora, tudo é como
deveria ter sido: Carlos, com seu exército, vinga-se de Marsilion e destrói as
forças mouras por completo. Mas um inimigo mais terrível se aproxima, que é o
Emir Baligante, senhor de todo o Islã, rei de Babilônia e suserano de quarenta
reinos de África e Ásia, com seus mais de quatro mil navios iluminados por
carbúnculos e lanternas de cores variadas: uma bela visão, se imaginarmos a
cena de sua chegada nas praias espanholas e de sua subida pelo Ebro.
O mundo cresce e ao contrário do
que dizem muitos comentadores modernos, a Canção não se mostra como um poema
épico nacional, para exaltar a galicidade e os franceses; estes últimos
morreram heroica e santamente em Roncesvalles, mas agora o exército carolíngio
que trava o maior dos combates não é somente francês: é bávaro, frisão, bretão,
alemão, burgúndio, lombardo, em suma, é cristão. É Franco no sentido que até
hoje os muçulmanos atribuem ao termo: franjun,
em árabe, significa qualquer ocidental cristão.
Assim, a história que começa com
uma querela de dois barões, cresce para uma batalha entre Franceses e Mouros andaluzes,
eleva-se no sacrifício de Rolando, estabiliza-se ao longo do pranto de Carlos e
de sua vingança sobre Marsilion, e agora cresce novamente para atingir seu verdadeiro
ápice numa batalha entre dois mundos, entre duas visões cósmicas. Nesse ponto,
a Canção não é francesa, mas cristã. E isso está conforme o universalismo do
mundo medieval, que no século XI ainda não conhece a consolidação das
nacionalidades. Era o tempo em que a Inglaterra tinha um rei francês.
A batalha final acaba resumida ao
duelo de dois reis anciãos. Carlos tem duzentos anos de idade e é antigo como a
cristandade o é; mas Baligante, segundo o poema, é mais velho que Homero. É
muçulmano, mas figura do paganismo de tempos imemoriais, da infidelidade que
remonta à Serpente. A vitória de Carlos no duelo representa a derrota final dos
infiéis, tornada possível pelo martírio de Rolando e seus companheiros.
Rolando é um herói trágico?
A tragédia deve inspirar terror e
compaixão: não deve mostrar um homem mau progredindo, porque isso causa
repúdio, tampouco deve mostrar um homem mau caindo em desgraça, porque isso não
causa medo.
O personagem trágico deve ser um
homem bom, mas possuidor de um defeito, um ponto fraco que será o pivô de sua
queda. A queda ocorre em parte por algum ato do personagem, em parte por uma
conjunção de fatores que lhes são alheios.
Daí o motivo de sua desventura
causar medo e compaixão: a grande culpa do herói trágico é a de não ser um
deus, e não é essa a condição de todos?
Rolando tem algumas
características do herói trágico: ele é nobre, tem qualidades de bondade,
piedade, bravura e lealdade; contudo, possui certas falhas, como excesso de
confiança, temeridade e um aparente orgulho. E sua aparente temeridade,
combinada com as maquinações ocultas de Ganelon, levam-no à desventura. Em
verdade, seria mais do espírito da tragédia se o seu destino resultasse das
maquinações dos deuses.
Contudo, questionemos se é
realmente uma desventura morrer como mártir e ser levado ao Céu pelas asas dos
querubins. Pela visão de um grego do século V a. C talvez Rolando fornecesse
material para uma tragédia. Mas Rolando não é um herói grego; ele é um franco
da Idade Média, é um cristão, e a perspectiva cristã pode diferir sutilmente
daquela de um pagão sábio.
No fundo, Rolando não buscava
viver, mas morrer, o que para um cristão é o verdadeiro começo da vida. A
glória que buscava era celestial, não terrena. O nosso herói estava disposto ao
martírio e nisso há lugar para a sua vontade. A trama oculta de Ganelon e dos
inimigos pode ter fornecido a ocasião do sacrifício de Rolando, mas ele se
decidiu pelo martírio, não tendo sido pego numa mera armadilha do destino. E
foi por sua aparente “queda” que ele se tornou ainda maior e mereceu dar nome à
Canção: é o mesmo paradoxo da Cruz.
Nesse sentido, Rolando não é uma
figura trágica, mas um mártir católico, de cuja trombeta o eco atravessa os
séculos para além de Roncesvalles, anunciando o fundamento da vida cristã:
serviço e sacrifício. Depois é o Céu.
Creio ser esse o sentido da Chanson de Roland, mas, caro leitor, eu
te convido a lê-la e a anotar tuas próprias impressões. Que este modesto ensaio
seja para ti uma pequena porta de entrada para um mundo desconhecido, que
enriquecerá o teu imaginário. Passa além do umbral, leitor, e prometo que uma
aventura te espera. Boa leitura. Munjoie!
** Corte, na Idade Média, não era
aquele lugar luxuoso e frívolo, com festas diárias e milhares de comensais
vivendo permanentemente à custa do rei. Isto estaria em conformidade com os
séculos renascentistas e modernos. A Corte medieval era um salão, um pátio, em
que o senhor ou o rei se reunia com seus familiares e servidores mais próximos.
A Corte ficava cheia em alguns dias, em que muitos eram convidados para o Natal
ou a Páscoa, do mesmo modo que a sala de nossa casa fica momentaneamente cheia
quando, por uma ocasião extraordinária, abrimos nossas portas a parentes e
amigos.
*** Dizem que durante o cerco de
Constantinopla, em 1452-53, um pequeno concílio de teólogos naquela cidade
estava a debater a cor dos olhos da Virgem Maria. Uma questão sem grande
importância num momento tão grave para a Cristandade, quando os turcos cercavam
um dos baluartes cristãos do Oriente.
Referências:
Les textes de la Chanson de
Roland (manuscrit d’Oxford), ed. Raoul Mortier, 1940
The Song of Roland, editora Penguin Books (1971),
introdução de Dorothy Sayers.
GANSHOF, F. L. O Que é Feudalismo? Edições
Europa-América.
DUBY, Georges. Guillaume le Marechal ou le Meilleur
Chevalier Du Monde. Fayard.
CROUZET, Maurice org. História Geral das Civilizações, vol
VII. Ed. Bertrand Brasil.
BLOCH, Marc. La Societé Féodale. Ed. Albin Michel.
CARPEAUX, Otto Maria. História da
Literaura Ocidental – Vol I. Edições do Senado Federal.
Oliphant and Roland’s Sacrificial
Death, por Robert Rois, artigo publicado em revista Anthropoetics XVIII, número
2, primavera de 2013.
-.
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