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Ânfora Ática (Séc. VI-V a.C). Aquiles luta com Pentesileia, rainha das Amazonas, na guerra de Tróia. |
1) Introdução à noção de Paideia
A educação moderna, de modo geral, e a brasileira, em específico, são alvo de críticas de praticamente todos os setores da sociedade. Isso se deve a inúmeros fatos, dentre eles enumeram-se os seguintes: 1) A baixa colocação do Brasil em provas internacionais; 2) A falta de eficiência na formação intelectual dos jovens, resultando numa massa de analfabetos funcionais, que, mesmo ascendendo ao ensino superior, escandalizam pela carência de capacidades básicas de leitura e escrita; e 3) O inchaço do currículo escolar, composto por matérias excessivas, as quais sobrecarregam os alunos desnecessariamente[1]. Tudo isso evidencia a falência do ensino brasileiro, e o último aspecto só mostra que as secretarias de educação enxergam como solução para a crise no ensino o aumento de conteúdo, como se quantidade fosse o problema e estivéssemos aprendendo pouco. A crise não se dá pelo pouco no sentido quantitativo, mas no qualitativo. Ademais, há muitos interesses particulares no currículo escolar, e a simples menção de enxugá-lo já causa uma revolta entre professores e tecnocratas, que perderiam, com isso, o seu quinhão. O problema, como visto, escapa um pouco os limites do especulativo, mas é necessário partir desse ponto, pois a teoria precede a prática.
Pois bem, em virtude desse cenário, a solução não é o aumento da quantidade das disciplinas, como mencionado. É mais urgente reformar o ensino desde a base com uma nova proposta educacional, que, sendo mais precisa em extrair do aluno o que ele tem de melhor, obedeça a semântica original da palavra: Educação vem de ex ducere, conduzir para fora, sair de um lugar a outro, ou, levando isso ao interior do homem, fazer algo sair, desabrochar. É necessário um novo "renascimento" - com ou sem pleonasmo - de ideias, que possa dar enfoque não na aglutinação de conhecimentos científicos dispersos mas no desabrochar das qualidades morais do homem, cuja força sempre vai ser o motor de realizações consideráveis na arte e ciência. Os antigos nomeavam essa confluência de qualidades por sabedoria. A sabedoria é o grau mais alto da humanidade, isto é, a excelência em suas duas potências superiores, a inteligência e a vontade.
Pois bem, a primeira educação pelo ideal de homem, ou sabedoria, da qual temos notícia foi a própria obra de Homero. O poeta deu vida, no seu poema, a personagens que se destacavam não só pelo seu valor no campo de batalha mas também pelas virtudes morais, que, se não são as mesmas que nós cultivamos, são necessárias à manutenção da pólis grega e da ordem política, sem a qual é impossível haver civilização. A cidade deve ser mantida primeiro pela obediência ao princípio de autoridade, depois pelo sacrifício pessoal que pode chegar inclusive ao da própria vida. Na Ilíada, a nobreza se consegue na luta e no campo de batalha[2], que põe em risco o próprio conforto em nome da manutenção da pólis. Por esse motivo, é necessário lembrar que toda batalha, na Ilíada, tem por finalidade preservar os sagrados princípios legados pelos deuses aos homens. Os deuses tomam parte na guerra porque não querem ver sua cidade destruída nem seu culto cair no esquecimento, principal consequência da tomada da cidade pelos inimigos. O culto não é apenas a religião, mas toda tradição de valores deixada aos homens. Não se pode transigir com o inimigo e deixar que ele arrase a cidade. Há muito em jogo.
Desde que se entenda o valor da educação, como transmissão de valores caros à sociedade em vista da formação de indivíduos virtuosos, compreende-se o aspecto utilíssimo dela para manutenção da ordem civilizacional[3]. Uma preocupação excessivamente tecnocrata vai de encontro a qualquer ideal de formação humanística. Educar é uma arte, na concepção clássica do nome, pois é uma reunião de diversos conhecimentos em vistas à confecção de uma obra. No caso, educar não é apenas o resultado de um método de ensino eficiente, mas, se a finalidade desta arte é a formação de homens virtuosos, o arcabouço espiritual da sociedade deve entrar em jogo. A partir dele se constrói o homem ideal.
A esta obra os antigos davam o nome Paideia. É um vocábulo grego de difícil tradução, porque nenhum dos que usamos hoje podem abarcar esta noção completamente. Nem educação, nem cultura, tradição ou literatura trazem de maneira tão exata a semântica do termo Paideia. É tudo isso e muito mais. É o espírito de uma sociedade manifestado materialmente em sua cultura e transmitido à posteridade. Assim como o homem é formado de um corpo material e uma alma espiritual, que lhe dá forma, uma sociedade possui seu aspecto material, um corpo, composto por pessoas e instituições, e o seu lado espiritual, uma alma, composta de valores cuja manifestação se observa em cada produção artístico-literária.
2) A educação em Roma: As bases cívico-morais de Quintiliano
No Império Romano, este aspecto da formação espiritual para a virtude fica ainda mais evidente, afinal Roma é uma pátria universal, é a Respublica. Em Quintiliano (Séc. I d.C), a Literatura ganha importância como primeira do sistema educacional das Artes Liberais. Este conjunto de matérias era composto de disciplinas básicas ao aprendizado da filosofia, chamada, pelos antigos, sabedoria. Na Idade Média, o sistema teve continuidade, embora tenha se alterado um pouco, tornando-se um edifício de sete matérias. Mesmo assim, a primazia das disciplinas continuou, desde Quintiliano, nas mãos da Litteratura, da arte de ler e escrever com acuidade. Por isso sua obra é tão importante para se entender a educação no período durante e depois do Império.
Em sua obra, ele define a Litteratura, nome latino da arte das letras, ou Gramattica, nome grego, como o ensino das letras. Em primeiro momento, aprendia-se a ler e escrever, e posteriormente, a interpretação e historiografia das obras literárias canônicas. É neste último que se faz necessária uma seleção criteriosa de obras a serem lidas pelos alunos. Não deve entrar no cânone escolar obras com conteúdo moral desagregador, cuja virtude do escrito ou das personagens seja incipiente e provoque sentimentos de paixão e sensualidade. Até mesmo Horácio, conhecido por seus discursos e argumentações, um dos mais importantes autores romanos, não estava no cânone escolar de Quintiliano em virtude da força descritiva de sua poesia erótica. Percebe-se que, mesmo em Roma, onde já florescia uma degeneração moral, a moralidade é cultivada na educação e o objetivo é sempre estabelecer um parâmetro de nobreza. Para isso, o currículo escolar deveria ser composto de obras literárias que transmitissem todos os valores da civilização e pudessem formar cidadãos dignos moral e espiritualmente.
A preocupação com esse aspecto ético e cívico era tanta que Sêneca lamenta o fato de os professores de então não conseguirem mais levar seus alunos à sabedoria e virtude. Estes mestres tornaram as Artes Liberais fomentadoras de vaidade intelectual e destituída de elevação espiritual:
“Queres saber o que eu penso das ‘artes liberais’: não admiro nem incluo entre os bens autênticos um estudo que tenha por fim o lucro. [...]. Somente devemos deter-nos na sua prática enquanto o nosso espírito não for capaz de tarefa mais alta; [...]. Compreendes por que razão se lhes chama ‘estudos liberais’: porque são dignos de um homem livre." (SÊNECA. Cartas a Lucílio. Carta 88. p. 415)
O discípulo deve usar as artes, na visão de Quintiliano, como meio seguro para adquirir as virtudes, nunca como um fim em si mesmo.
3) Os primórdios da Educação na România
Com o advento do cristianismo, esse interesse espiritual se elevou à quinta potência. Não era mais a formação de cidadãos viris que importava, mas um novo parâmetro espiritual, a santidade. Parafraseando Sêneca, que lucro pode haver na aquisição de cultura literária se não se aproveita na eternidade? "Pois que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma?" (Mc VIII, XXXVI) O acúmulo intelectual é mais uma coisa vã deste mundo passageiro e não aproveita nada ao espírito do homem se não for direcionado a algo mais alto.
Por esse motivo, é claro que mais cedo ou mais tarde, haveria um interesse de filósofos e educadores cristãos em uma proposta mais abrangente que se coadunasse com a nova concepção de homem. Muitos estudiosos da România formalizaram uma proposta educacional que contemplasse todos os aspectos humanos, tanto materiais quanto espirituais, sobretudo o fim último do homem, a salvação da alma. Dentre eles, destacamos Cassiodoro, do qual iremos falar daqui a pouco. Sobre os educadores da România, de modo geral, percebe-se que primeiro eles receberam o tesouro das Artes Liberais e as instruções de Quintiliano acerca de seu ensino, depois acrescentaram a formação católica romana como corolário espiritual.
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As artes liberais personificadas e seus respectivos mestres. |
Cassiodoro (~477 - 581 d.C) foi proeminente nisso. Em sua obra Institutiones Divinarum et Saecularium Litterarum, ele, que antes era um diplomata e conselheiro do rei ostrogodo, Teodorico I, busca, na reclusão em que escolheu terminar sua vida, educar seus monges para compreender as escrituras e a ciência de Deus, utilizando-se da literatura mundana para este fim. Une as duas artes, a sagrada e a profana, e subordina a última à primeira. Sua obra Institutiones tornar-se-á basilar em todo período medieval e formará muitas inteligências superiores no período subsequente, como Isidoro de Sevilha e Alcuíno de York. A finalidade da sua obra não é, como nos clássicos, a formação de homens nobres -ficando isso como um aspecto adjacente do estudo da literatura-, mas a contemplação de Deus através da inteligência, que sendo ampliada pela leitura das obras, prepara o homem para aquisição das virtudes, que devem direcionar o homem ao Céu:
"O felicitas magna fidelium, quibus promittitur sicuti est Dominum videre, cui devotissime credentes iam beatitudinis spe magna refleti sunt!" [4]
A fé subordina e aperfeiçoa todas as ciências e artes, inclusive a literária, justamente porque as direciona ao fim último do homem, Deus mesmo. Eis o verdadeiro humanismo: a perfeição do homem ordenado a seu fim mais alto. Este humanismo não é como o do século XVI, que apenas copiava o paganismo e os modelos greco-romanos, mas se estabeleceu no século V, na formação da Cidade Cristã, cujas bases encontram-se em obras educacionais de grande valor, como a de Cassiodoro, que absorvem o conhecimento dos antigos e o dignifica pela espiritualidade cristã.
Comparando a educação humanística clássica e medieval com a moderna, inaugurada no Renascimento, percebe-se o abismo de método e finalidade entre as duas. Não é de se estranhar os pífios resultados que se tem hoje em virtude da ausência completa da perspectiva espiritual do homem. Porém a Paideia não é algo inalcançável, pois está, à mão, na própria essência do Ocidente, e, mais à mão ainda, nas obras educacionais e literárias dos antigos. O remédio para o nosso debacle não pode ser senão este: retomar à sabedoria dos clássicos e fazer renascer a Paideia. Porém, isso deve ser feito com cuidado: não se deve apenas imitar, de maneira inadvertida, a antiguidade greco-romana, como o fizeram os humanistas do séc. XV e XVI, pois cairemos no mero acúmulo de cultura letrada - e a advertência de Sêneca estará sempre diante de nós-, mas à maneira dos românicos do séc. V, absorvendo o espírito clássico, permeado pela busca das virtudes políticas, e o subordinando à ciência sagrada para a salvação da alma. Eis o renascimento do homem! O que está à parte disso é morte.
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[1] - O professor Napoleão Mendes de Almeida, no prefácio a sua "Gramática Latina", descreve a impressão de três matemáticos ilustres ao chegarem ao Brasil, por volta dos anos 70. Eles observaram que o aluno brasileiro aprende, no curso secundário, conteúdos que só são vistos no 2º ano de faculdade na Europa. Por outro lado, o mesmo estudante tem dificuldade de fazer raciocínios simples e concisos. Acrescento a essas impressões a falta de cultura literária e manejo da língua, com os quais me defronto diariamente na minha experiência como professor do ensino médio. Os catedráticos estrangeiros chegaram a pedir, como solução para o problema, que o currículo brasileiro oferecesse "menos matemática e MAIS LATIM". (C.f. ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Latina. Prefácio: A Verdadeira Importância do Latim).
[2] - "O valente é sempre o nobre, o homem de posição. A luta e a vitória são para ele a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida." (JAEGER. Paideia: A Formação do Homem Grego. 2003. p. 40)
[3] - O famoso filósofo Werner Jaeger menciona, como premissa de seu livro, que os gregos “estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação” (Id. p. 1). Existe uma vida espiritual particular, pois o homem é dotado de alma e uma nação também tem uma alma, e ela se manifesta através, sobretudo, de sua literatura.
[4] - "Ó felicidade dos fieís, a quem foi prometido ver a Deus face-a-face, embora os que crêem nEle, neste mundo, com grande devoção e esperança, já estejam cheios desta felicidade!" (Apud CURTIUS, Literatura Européia e Idade Média Latina. 1957. p. 476. Tradução minha)
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