O Trovadorismo Português I: Prelúdios

 

Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Ilustração do mês de agosto. Obra dos Irmãos de Limbourg, Barthélemy d’Eyck e Jean Colombe. Tempera e folha de ouro sobre papel velino medindo 29X21cm, século XV. Encadernação do século XVIII. Conservado no Musée Condé no Château de Chantilly, Chantilly, França.


Trovadorismo é o nome que damos para o primeiro período literário da Idade Média portuguesa. O período remonta ao final do século XI e se estende até meados do século XIII, quando atinge seu ponto alto. Nessa época, a produção literária é marcada pela riqueza e variedade, apresentando gêneros diversos tanto na historiografia, como na prosa de ficção. Exemplos notáveis são as novelas de cavalaria, que incluem, entre outras coisas, as lendas do ciclo bretão, que têm o Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda como protagonistas. Neste breve estudo, contudo, nos deteremos na produção poética, mais especificamente nas cantigas trovadorescas, que marcam de forma especial este período da literatura portuguesa.

Antes de entrar, porém, nos detalhes do assunto, é mister que façamos algumas relações históricas a fim de nos transportarmos para a Idade Média portuguesa e compreendermos melhor o contexto em que foram produzidas as cantigas.

O Contexto Histórico do Trovadorismo

O período em que ocorre o trovadorismo é de grande glória para Portugal. As nacionalidades ibéricas encontram-se frescas cheias da alegria da Reconquista, que invade o espírito peninsular com a expulsão definitiva dos últimos muçulmanos por D. Afonso III em 1249, na Conquista do Algarve. É inegável que um sentimento de vitória e de triunfo fizesse nascer no gênio artístico novas formas de expressão, o desejo de comunicar a alegria sentida através da beleza poética, da música, da dança etc. E não foi diferente com os portugueses: muito da produção poética desse período possui as marcas da Reconquista.

Outro fator histórico importante para a compreensão das cantigas, especialmente as cantigas de amor, é a organização da sociedade medieval. É de amplo conhecimento que tal organização se estruturava dentro de um sistema chamado feudalismo, que representou a base política e econômica da Europa durante toda a Idade Média, tendo muito de suas estruturas, inclusive, perdurado até o século XIX. Sabemos que, sendo a economia medieval fundamentalmente agrária, o poder girava em torno da posse de terras. As atividades econômicas feudais eram baseadas na relação suserania-vassalagem, que consistia, resumidamente, no seguinte: o senhor feudal arrendava as terras de seu feudo aos vassalos, e estes lhe pagavam o arrendamento com os produtos cultivados e colhidos naquelas terras. Entre suseranos e vassalos estabelecia-se um contrato de vassalagem, em que direitos e deveres eram observados:

·                       suserano, por exemplo, deveria: proteger e dar assistência aos seus vassalos em caso de conflitos; receber de volta o feudo se o vassalo morresse sem deixar herdeiros; proibir casamentos entre seus vassalos e pessoas consideradas infiéis ao suserano, entre outras coisas.

·                   Já no que diz respeito aos deveres do vassalo, podemos listar: prestar serviço militar ao suserano durante certo tempo; fazer o possível para libertar o suserano em caso de prisão; comparecer a reuniões e eventos promovidos pelo suserano, entre outros.


Na organização desse sistema social, ressalta-se o papel do rei, que era uma espécie de suserano-mor, pois o senhor feudal tinha a obrigação de lhe prestar contas, além de ser seu cavaleiro, companheiro e defensor nas guerras, jurando-lhe fidelidade. Em relação ao rei, pode-se dizer que o senhor feudal também era uma espécie de vassalo.


Além disso, é sempre necessário falar sobre a fundamental, a vital importância da Igreja na Idade Média. Época de glória do catolicismo, a Igreja Católica moldou definitivamente a civilização medieval, fornecendo tudo o que era necessário, e mais do que necessário, para a formação humana e espiritual do povo. Desta forma, a Igreja, além de regrar e santificar a vida espiritual dos homens, fornecia para eles os meios mais requintados de contemplação, instruía acerca da vida práticaestimulava o conhecimento científicoa filosofiaa tradução, trabalhava para a manutenção de obras raras, preparava e guardava cópias de manuscritos importantes, além de atuar diretamente no socorro dos mais necessitados, mantendo hospitais, orfanatos e escolas. Não me deterei nesta questão aqui, tendo em vista a gama de referência especializada sobre o assunto, apenas ressalto essa importância porque, para a compreensão das cantigas, a consideração do teocentrismo também é fundamental, uma vez que a produção artística medieval se alimenta da seiva emanante da frondosa árvore que é a Igreja.  

A poesia medieval trovadoresca

            Como já mencionado no início deste texto, o século XII marca o início da produção literária portuguesa na Idade Média, e o seu primeiro momento é justamente o trovadorismo. A palavra tem origem no termo provençal troubadour, cujo radical trouver significa “achar”, isto é o trovador deveria ser capaz de “achar” os seus versos e aliá-los a uma melodia para formar uma canção (chanson), daí as cantigas trovadorescas.

            Tanto a origem do termo quanto a origem dos gêneros poéticos do trovadorismo são provençais. Desde o século XI, a região da Provença, no sul da França, era considerada um verdadeiro centro cultural, com toda a efervescência própria de regiões que assimilam manifestações artísticas, e ganham, com isso, adesão popular, pois aos artistas eram dadas boas condições de produção pelos senhores feudais, e isso movimentava a vida nas cortes, favorecendo o trânsito e o influxo dos estilos trovadorescos particulares da região da Provença. Essas condições serviram como meios para que os trovadores provençais se expandissem através da Europa.  Para isso, alguns fatores contribuíram, sobretudo, a movimentação de pessoas, de mercadorias etc. em virtude das Cruzadas, que levavam os fiéis a Lisboa por ser o porto mais próximo para embarcar com destino a Jerusalém. Nesse trânsito de pessoas iam naturalmente trovadores, jograis, menestréis etc. que se utilizavam do “caminho francês” aberto nos Pirineus e introduziam em Portugal e Galiza a nova moda poética.

Por esta época, os trovadores provençais já não mais produziam as cantigas em latim, mas em língua vernácula, pois já é o tempo da formação das nacionalidades e do desenvolvimento de um espírito de identidade nacional. É, portanto, através da arte da chanson, com a inerente presença do fin’amor, que os trovadores definitivamente formaram e forneceram os padrões artísticos e culturais do período de transição entre os séculos XI e XII, padrões estes que se tornaram fundamentais em quase toda a Europa, principalmente nas cortes, durante os séculos posteriores. No entanto, o trovadorismo português, apesar da forte influência provençal, inovou bastante, assumindo traços muito específicos e muito diferentes da arte e do estilo das canções provençais em voga, principalmente pelo desenvolvimento das chamadas Cantigas de Amigo, não existentes em nenhum outro movimento artístico que tenham cultivado os modelos occitânicos.

A adaptação às novidades provençais em Portugal e na Galiza não foi algo muito difícil, uma vez que em Portugal já havia uma poesia de forte tradição popular oral, o que predispunha a aceitação da fusão entre as duas correntes, e dava um caráter próprio e identitário ao trovadorismo nas terras galego-portuguesas. Além disso, o caráter oral e simples das cantigas atingia e agradava a diversos públicos, desde os nobres aos mais humildes, e isso explica seu próspero desenvolvimento em detrimento das manifestações em prosa, que exigia um alto grau de instrução.

            A poesia trovadoresca galego-portuguesa se subdividia em dois tipos: a poesia lírico-amorosa e a poesia satírica. Esses dois tipos se subdividiam em mais dois cada um. O primeiro consistia das cantigas de amor e das cantigas de amigo, e o segundo, cantigas de escárnio e de maldizer. Neste breve estudo, comentarei cada uma delas separada e detalhadamente. A priori, importa saber que, didaticamente, aceita-se a publicação da “Cantiga de Guarvaia”, de autoria de Paio Soares de Taveirós (séc. XII) e dedicada a Maria Pais Ribeiro – daí ser também chamada de “Cantiga da Ribeirinha” – como o marco inicial do Trovadorismo em Portugal, ou no ano de 1189 ou 1198. Além de Paio Soares de Taveirós, outros trovadores também se destacam, como o rei Dom Dinis (1261-1325), conhecido como “o rei trovador” pela extensão e qualidade de sua obra, João Garcia de Guilhade, Martim Codax, Afonso Sanches (filho de Dom Dinis), João Zorro, Aires Nunes e João Soares de Paiva, nascido em 1141 e considerado o mais antigo trovador português.

Além das cantigas trovadorescas lírico-amorosas e satíricas, floresceu na mesma época uma outra espécie de cantiga, destinadas ao louvor da Virgem Maria e à narração de seus milagres. Trata-se de um conjunto de 420 cantigas trovadorescas que ficaram conhecidas como Cantigas de Santa Maria, e foram atribuídas ao rei D. Afonso X. As Cantigas de Santa Maria pertencem, na verdade, a outra tradição cultural, um pouco diferente da tradição das cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer, mas como possuem em comum com elas a língua e o contexto de produção, entrarão também neste breve estudo que ora faço. 

A língua das Cantigas

A língua falada na Península Ibérica até meados do XIV era o galego-português. Oriundo do Latim, o surgimento desse idioma é anterior ao século IX. Com passar dos anos, os dois idiomas se separaram, gerando o galego e o português atuais, mas nesse período da Idade Média em que estamos situados para falar das cantigas trovadorescas, o galego-português representa uma das fases de evolução do português para a qual a poesia trovadoresca contribuiu muito significativamente. Entre os séculos IX e XIV, no entanto, havia pouca diferença entre o linguajar local, de modo que a língua falada em grande parte do território português era virtualmente a mesma. De acordo com o site da Universidade de Lisboa dedicado às cantigas trovadorescas,

 

[...] nem mesmo as fronteiras políticas que por meados do século XII se foram desenhando, e que conduziram à formação de um reino português independente ao sul, parecem ter afetado imediatamente esta unidade linguística e cultural, cujas origens remontam à antiga Galiza romano-gótica. Da mesma forma, a extensão do novo reino português até ao extremo sudoeste da Península (que se desenrola, até 1250, ainda no movimento da chamada Reconquista cristã), é um processo que pode ser entendido, nesta primeira fase, como um alargamento natural desse espaço linguístico e cultural único. (Sobre as Cantigas, disponível em https://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp).

O que, na verdade, separou o galego do português foi o deslocamento hispânico para a região da Castela, principalmente após a conquista de Sevilha em 1248. Isto será um fator decisivo para a separação das duas línguas e para o consequente avanço do Castelhano. A partir desse momento (meados do século XIV), o galego-português deixa de ser a designação de uma unidade linguística e dá lugar a um protagonismo do idioma português de forma mais isolada, já que a Galiza, culturalmente imersa numa espécie de treva (séculos escuros), não se firma com uma produção cultural forte em língua própria para lhe dar vigor. O português então assume uma identidade linguística e cultural independente, integrando o espaço cultural peninsular no mesmo nível das outras línguas em formação (castelhano, catalão).

Entretanto, as cantigas trovadorescas então situadas no período entre os séculos X e XIV, como já mencionado anteriormente. Este é o período áureo do Galego-Português, pois é nesse período (mais precisamente no fim do século XII) que a língua falada também se constitui como língua literária. Para tanto, há um longo caminho, um gradual processo de evolução até o fim do movimento trovadoresco em meados do século XIV.

A música das Cantigas

O acompanhamento musical das cantigas trovadorescas é algo digno de nota. A palavra “cantiga” vem de “canto”, isto é, uma composição poética musicada, ou feita para se cantar. A cantiga trovadoresca era, então, cantada, e, como toda composição musical, dependia da memória e do ouvido. A partir da coroação de D. Afonso III, inseriu-se a notação musical, que possibilitava uma mais fácil e rápida reprodução da cantiga sem que necessariamente o trovador ou o jogral a tivesse de memória. As cantigas de Martim Codax, por exemplo, contidas no Pergaminho Vindel, contém notação musical, bem como as de Dom Dinis no Cancioneiro fragmentado, o Pergaminho Sharrer, chamado assim em alusão ao nome de seu descobridor Harvey Sharrer, que o encontrou na Torre do Tombo na década de 90. O mesmo esforço de registrar uma notação musical deve ter sido feito para as outras cantigas, como se pode verificar no Cancioneiro da Ajuda, que tem vestígios de pautas, mas até hoje não se pode saber como eram os compassos musicais das cantigas nele contidas porque ficou inacabado.

Em relação aos instrumentos, diversos deles poderiam ser utilizados a depender do gênero de cantiga e do propósito do trovador. Os próprios trovadores tocavam o instrumento, com exceção dos instrumentos de sopro, que um ajudante tocava enquanto ele realizava sua apresentação. Dentre esses instrumentos, os mais utilizados eram os de sopro, como mencionado, de corda e de percussão.  

Os Cancioneiros

            Os Cancioneiros eram livros artesanais nos quais as cantigas de um determinado período eram reunidas. Conhecemos as trovadorescas através de três cancioneiros. O mais antigo é do século XIV, o único que chegou a ser contemporâneo da última geração de trovadores, chamado Cancioneiro da Ajuda, talvez o mais incompleto, contendo apenas 310 composições, das quais a maioria é cantiga de amor.

O segundo Cancioneiro é chamado de Cancioneiro da Biblioteca Nacional ou Cancioneiro Colocci-Brancuti, chamado assim devido ao importante trabalho de compilação de Angelo Colocci, sem o qual disporíamos apenas do Cancioneiro da Ajuda, que é, como dissemos, incompleto. O Cancioneiro da Biblioteca Nacional é o mais completo, contendo 1647 cantigas de todos os gêneros e de diferentes autores. Foi compilado provavelmente no século XV, mas só foi levado a Portugal no início do século XX.

O terceiro cancioneiro é o Cancioneiro da Vaticana, guardado na Biblioteca Apostólica Vaticana.  Seus manuscritos foram copiados na Itália, provavelmente nas primeiras décadas do século XVI. Contém 1205 composições de diversos autores e incluindo os quatros gêneros de cantigas.

Além dos cancioneiros, chegaram ainda até nós algumas folhas avulsas com cantigas, duas delas muito importantes, que incluem notação musical. São elas: o Pergaminho Vindel e o Pergaminho Sharrer, mencionados na seção anterior.

No mais, muito do que se refere à tradição manuscrita das cantigas trovadorescas galego-portuguesas ainda é obscuro. Não se sabe com precisão quem foram os compiladores e em quais condições trabalharam. Há indícios apenas de que tenha sido D. Pedro, conde de Barcelos, quem compilou as cantigas que hoje conhecemos, ou ele seja talvez o compilador final, considerando, como afirmam alguns estudiosos, que já na corte de Afonso X foi feita uma primeira compilação.

A terminologia poética do trovadorismo português.

            Em seu livro A Literatura Portuguesa, o Professor Massaud Moisés apresenta uma sucinta terminologia poética do Trovadorismo português no capítulo que dedica a este período da literatura portuguesa. Segundo o professor, a poesia trovadoresca medieval apresenta requintados recursos formais, principalmente nas cantigas de amor, a despeito de possuir certo primitivismo e espontaneidade decorrentes do apelo para a música e a dança. Não sendo possível apresentar todos estes recursos aqui, listo apenas os mais recorrentes, conforme consta no capítulo do livro mencionado.

·       Palavra = verso;

·       Palavra-perduda = verso branco ou livre (sem rima);

·       Cobra = estrofe;

·       Cobras singulares = estrofes com rimas próprias;

·       Cobras uníssonas = estrofes com rimas comuns;

·       Finda = estrofe de estrutura própria, mas ligada pela rima ao resto da cantiga e servindo-lhe de remate;

·       Atafinda = encadeamento, ou enjambement, ou seja, quando o final de um verso se liga diretamente o início do próximo sem interrupção de sentido ou de ritmo;

·       Dobre = repetição de uma palavra no interior de uma mesma estrofe;

·       Leixa-pren = (deixa-prende): recurso formal de apanhar o último verso de uma estrofe (que não o refrão) e com ele iniciar a estrofe seguinte, inteiro ou com ligeira variação;

·      Paralelismo = quando o sentimento poético se mantinha inalterado ao longo das estrofes e, para exprimi-lo, o trovador recorria às mesmas expressões, apenas utilizando sinônimos nas rimas;

·       Tensão = cantiga dialogada.

·       Trovador = o poeta que compunha, cantava e tocava as cantigas. Em geral era um fidalgo;

·       Jogral = designação imprecisa, podendo ser um saltimbanco, um ator mímico, um músico ou um compositor de cantigas;

·     Segrel = uma espécie de jogral-trovador; alguém que ia de corte em corte para desempenhar a troco de um soldo a interpretação de cantigas próprias ou alheias;

·       Menestrel = exercia as funções de músico e cantor da corte.

O valor da poesia trovadoresca

            A poesia trovadoresca é sem dúvidas um patrimônio da literatura de língua portuguesa. Possuidora de um lirismo sensível, análises profundas do amor – especialmente nas cantigas de amor – revela um platonismo que deixa latente uma ardente sensualidade que ainda hoje encontra espaço na poesia de temática amorosa.

            O fato de a língua, o galego-português, ser quase incompreensível para o leitor comum de hoje pode fazer com que haja um desestímulo para a leitura das cantigas trovadorescas, e é por isso que enfatizei no início desta introdução a importância do conhecimento histórico e contextual das composições das cantigas. Sem isso, o leitor, que poderia experimentar a beleza e a pureza tão naturais que brotam desse tipo de poesia, não apreende as nuances tão originais e límpidas que iniciaram a literatura em nossa língua, ficando privado de conhecer a fonte primária do patrimônio lírico da nossa língua.

            Não é à toa que encontramos os ecos da poesia trovadoresca nos mais geniais poetas, sejam portugueses ou brasileiros, como Camões, Bocage, Garrett, Gregório de Matos, Manuel Bandeira e tantos outros. Alguns estados de alma que esses poetas se esforçaram por expressar, os trovadores o fizeram de forma espontânea, muito mais pela intuição e sensibilidade de uma época, a época medieval, do que pela lima da pena poética, e por isso, os gênios voltaram a ela. Este é o principal valor da poesia trovadoresca na nossa tradição poética.

            No próximo texto, falarei das cantigas de amor. Aguardem. 


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