Teodicéia: Uma Viagem Pela Idéia de Deus na História.


1. No Princípio era o Verbo...

Se há algo em que ateus e religiosos tendem a concordar é que o conhecimento de Deus se inicia pelo temor. Está nas palavras de São Paulo e nos Livros Sapienciais, e é repetido nas diversas cátedras seculares: os povos mais primitivos encontravam em Deus uma resposta para seu medo; e mesmo os latinos eloquentemente repetiam: "primeiro no mundo o temor criou os deuses"

Mas diferem as concepções religiosas justamente naquilo que é mais essencial, na natureza do temor a que se referem. É claro que os iluminados do século tratam de um temor servil, uma incipiente explicação dos fatos naturais para dar alívio à perplexidade que é marca da fragilidade humana. Enquanto isso, os santos ensinam se tratar de um temor filial, uma profunda contemplação diante do infinito, que absorve a insignificância do homem em um abraço de amor e gratuidade.

Indiferentemente, sob a forma de uma religião primeira e natural, derivada de Adão e Eva, é certo que havia uma noção de sacrifício, cujo fim envolvia ao menos dois aspectos: a adoração e a expiação. Por um lado, pela oferta de valor, da melhor parte do fruto do trabalho; e, por outro, pela oblação, a destruição da vítima em lugar do sacrificador. Contemplação e expiação, reconhecimento e temor.

Já Caim e Abel prefiguram essa primeira religião de tradição adâmica: uma revelação natural fundada na esperança da remissão prometida no dia da expulsão do Jardim. Cada um dos irmãos deve oferecer a Deus parte do fruto de seu trabalho: enquanto Abel é pastor, trabalha na conservação e desenvolvimento da vida, Caim trabalha à terra, símbolo dos que sujam suas mãos com o mais baixo e vil. Caim parece padecer o exato castigo que Deus preparou ao homem, colher da terra com o suor do rosto, enquanto Abel parece transcender do castigo, cuidando do rebanho na liberdade própria de seu ofício. Dessa diferença essencial nasce o contraste entre a benção de Deus sobre Abel e a rejeição sobre Caim, em virtude do lugar onde repousava o coração de cada um.

2. A Confusão Diabólica

Mal começa a história do homem e seguiu-lhe a história do homicídio, porque a paga do pecado é a morte. Não pode existir uma história humana em que esta não esteja presente. Mas o diabo também não descansa e parte com seu plano de matar também a alma humana, jogando na cisão da primeira família a confusão religiosa, primeiro entre os descendentes de Caim, que fundam as cidades - símbolo do conforto e da fuga das virtudes, que logo seduzem os filhos de Deus e se misturam na confusão da humanidade. Com o tempo, o entenebrecimento da inteligência leva o homem a esquecer a tradição, mesclando a ela elementos diversos que, apesar de manter a memória da queda, do pecado carregado pelo gênero humano, da existência de Deus e a promessa de um salvador, confunde essas mesmas idéias com a pluralidade de deidades, a ação de gênios e demônios, a adoração da natureza como divindade, o advento de heróis e a prática de rituais mágicos, confundindo graça e poder.

Este período confuso e de duração incerta, leva o homem não mais a um ato de adoração e expiação, mas sobretudo de iniciação, em busca de uma verdade primordial perdida e só reencontrada através de uma ascese e da recepção dos mistérios. A gnose tem origem em uma noção de alma imortal e divina escondida na matéria - ou mais bem presa - e que segue um certo esquema paralelo aos fatos naturais: nascimento, colheita, estações... Deus aparece como um desconhecido que se revela de forma imanente, muitas vezes por uma linguagem irracional, poética e profética.

Sobretudo no oriente, a noção comum era de uma confusão maior ou menor entre Deus e a criação. A própria natureza era sustentada por Brahma, ou era ela mesma divina, fazendo do homem uma parcela consciente de si mesma, que parecia indicar um sentido ou um progresso natural, que poderia ou não ser cíclico, mas que terminava por destruir a individualidade das almas.

3. A Ordem da Razão 

Não demorou muito para que os homens questionassem os problemas patentes nessa nova relação religiosa. Seja pelos aspectos demasiado materiais dos deuses, seja pelas práticas assombrosas que os mistérios foram adquirindo, a aversão inicial se aliou com um providencial talento para o raciocínio. Certamente que os filósofos da Physis contribuíram sobretudo com sua noção de Cosmos, que denunciava uma inteligência por detrás de toda a criação, mas essa noção rudimentar vai ganhar especial relevo com Sócrates e sua missão divina de levar os homens à virtude e ao próprio conceito de idéia.

O que o sábio ensinava quase como que uma intuição inspirada, nas hábeis mãos de Platão ganhará os contornos de um primeiro sistema que chegará a fundar a metafísica. Mas muito para além do mundo das ideias, a mais refinada intuição de Platão está no seu demiurgo, que deve criar todo o mundo através da contemplação direta da idéia do bem. Nesse sentido, a ordem do universo passa a ter um fundo teleológico, que termina por determinar o homem na virtude, alcançada através do conhecimento e da ascese moral.

E se não bastasse tão elevado pensamento, um segundo discípulo refinaria ainda mais esses conceitos, fundamentando tudo em princípios lógicos e levando o sistema de seu mestre a um novo patamar epistemológico. Trata-se de Aristóteles, que dará a metafísica seus potentes instrumentos de ato e potência, e retirará da aparente estática platônica um universo inteiro que é movimento, com toda a natureza movida por um motor imóvel. A realidade parece se decifrar nas mãos do estagirita, e Deus aparece como o princípio e o fim, a idéia mesma de bem cristalizada e diretamente atuante na existência do mundo, como seu motor. O rigor aristotélico faz que rapidamente o filósofo transporte o mundo para o microcosmo da alma, fundando uma ética das virtudes fechada nas causas e na natureza humana, investigando até mesmo a alma imortal e seu intelecto. Chegamos ao pico intelectual sobre Deus, ao máximo possível para o homem. Agora só falta Deus dar o remédio final para curar a confusão em que o mundo se perdera.

4. A Revelação

O advento de Cristo é certamente o cume da revelação, em que a transcendência divina faz contato com o conhecimento humano pelo magnífico canal da união hipostática. Mas anteriormente a isso, Deus cuidou de traçar as diretrizes que elevassem a compreensão dos homens ao necessário entendimento dessas realidades sobrenaturais. Aos gentios, Deus deu a metafísica; para os judeus, seu povo escolhido, concedeu-lhes a revelação, em especial na pessoa de Moisés.

O episódio da Sarça Ardente é digno de uma obra literária, de tão completo e belo. Deus, que se transfigura sob a imagem de um fogo intenso que não queima, de uma árvore que se abrasa e se mantem viva, fala a Moisés e lhe comunica seu nome: eu sou aquele que é. Tão elevada é a mensagem que faria qualquer analista duvidar da historicidade ou autoria do pentateuco, não fosse o zelo com que os judeus protegiam seus livros, em especial os escritos pelo próprio Moisés.

O giro intelectual que o simples nome divino causa é gigantesco, e na pena de Santo Tomás de Aquino, terá seu mais profundo desenvolvimento: Deus não é simplesmente um motor imóvel ou uma causa incausada, é causa de si mesmo e é o próprio fundamento da realidade. Nele, a existência e a essência se confundem, e o sustentar a realidade, por mais liberal que seja este ato, é natural a sua própria existência. Deus é, e por isso são todas as coisas. Quando Cristo chamar a si mesmo de Alfa e Ômega, há outra concepção ainda mais profunda do que dizer que por Ele foram feitas todas as coisas e para Ele todas as coisas foram feitas: é dizer também que todas as coisas são Nele como sua causa e possibilidade, pois aquele mundo de idéias que, em Platão pareceria uma realidade paralela, não é mais que as formas puras concebidas na mente divina que ganham existência pela ação do Verbo. Mais alto ainda será a noção de que por sua própria Paixão esse mesmo Deus, amante em extremo, fará nova todas as coisas, inaugurando o oitavo dia da criação: a Redenção do gênero humano.

5. A Morte de Deus

Um Deus sem projeto de poder político e que devolve ao mundo o sentido de dor não atraiu naturalmente aos homens. Alcançados os últimos limites naturais do intelecto, os homens se voltaram ao domínio da natureza pela técnica, deixando os conceitos abstratos para formular os métodos matemáticos. O primeiro ataque é necessariamente contra a inteligência. Se Deus preparou o intelecto do homem para receber a Revelação, é pela destruição desse intelecto que se alcançará o esquecimento de Deus. Deus não morre, dirá um famoso mártir dos trópicos, mas pode ser esquecido. A ingratidão é a tópica da história de misérias da humanidade.

O primeiro ataque está na querela dos universais, mas nem o jovem franciscano veria o alcance de sua malfadada teoria na pena dos cartesianos e dos seus herdeiros. A dúvida é elevada a método, a crítica passa a ser a forma, e o conceito, que antes era idéia estática, ganha seu próprio movimento progressivo. O homem aprendeu que os astros não eram corpos incorruptíveis, e com a morte dos astros, morreram também as idéias imortais, as constelações da inteligência. Preservando os fenômenos que possibilitavam ao homem a medida e o controle sobre todas as coisas - controle tirânico que promoveu a bomba atômica e o trem bala, mas que se ressente dos dons de domínio e integridade que eram o estado natural do homem antes da queda -, o homem negou a possibilidade do conhecimento das essências. Era cortada a linha da transcendência.

A isso seguiu-se o materialismo, a psicologia passou do amor ao desejo e desaguou, por fim, na libertação dos ímpetos. O caos foi preferido à ordem, por um medo malsão da proximidade entre os termos teleologia e teologia. Abriram-se as eras das depressões e dos testes vocacionais, porque o homem perdeu a sua bússola, o seu norte e seu lugar no mundo. Há controle sobre os átomos, mas não há controle sobre as próprias vidas.

6. Uma Resposta Evolutiva

Todo esse materialismo levou a uma reflexão profunda nos campos das ciências naturais, e posteriormente no das ciências sociais. A idéia de Darwin, e suas consequências no positivismo, formulou uma noção de evolução necessária, que provocará nos espiritualistas uma esperança de que a espiritualidade seja o último estágio de evolução da matéria. Por um lado, teremos um reflorescimento do gnosticismo, com Teilhard de Chardin e sua matéria que, no fim da história, se descobre consciente e que é Deus. Mas do ponto de vista social, há uma confusão entre a salvação do homem e a prosperidade, seja pela força livre do mercado, seja pelo comunismo dialético, a bem-aventurança passa a ser uma realidade alcançável por uma luta entre a matéria e o espírito, em que a história é o plano de fundo.

A Glória de Deus e a Salvação das Almas passa a ser entendida como a prosperidade dos povos. O Evangelho se transforma em programa social, ecológico, e até a Igreja parece querer ser antes globalista que universal. A simples decadência das idéias levou os homens ao rompimento final com Deus, uma espécie de pecado terminal, para usar as palavras de um grande mestre. No retorno a todas as heresias antigas, Deus voltou a ser um Deus desconhecido, adorado por poucos que são atraídos por sua graça. E esses são ainda os tempos atuais, o ecletismo sem forma por não ter a idéia fundamental de um Deus que é.

7. O Fogo Sagrado

E agora? 

É preciso acender o fogo sagrado. Esconder os dons do Templo. Tomar o espírito e o zelo dos Macabeus. A Igreja que vive desgarrada, despedaçada, desaparecida do mundo, quase como que morta - se não fosse impossível pelo dogma da indefectibilidade-, resiste na perseverança dos crentes. A Fé é este Fogo Sagrado, a Esperança é sua força, a Caridade, o seu calor. E é claro que vivemos da Caridade, esta virtude que é perene, mas vivemos igualmente das virtudes peregrinas, tão frágeis se não há ação de Deus - ação silenciosa, que exige o silêncio para ser ouvida.

Não é simples ser cristão na era moderna. O relativismo grassa em nosso tempo. Dizia Corção que o homem detém três antenas para captar as virtudes teologais, uma espécie de adaptação da matéria para receber a forma divina. Tratam-se do senso de objetividade, do senso lúdico e do senso de alteridade. Hoje, mesmo estes sentidos estão entorpecidos, tornando difícil ao homem alcançar a verdade, o bem, o belo. Vivemos em uma segunda Era das Grandes Navegações, atravessamos mares perigosos, encontramos inimigos, e esperamos que nossas ações ajudem os de bom coração a retomar a qualidade de homens para que retomem o caminho da amizade com Deus. O caminho é o mesmo dos franciscanos e jesuítas a que devemos nossa civilização: educação da inteligência e da vontade, vida da graça na dedicação intelectual e na prática das virtudes. Em suma: é preciso acender o Fogo Sagrado!

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