O Ocidente tem uma tradição historiográfica antiqüíssima, remontando a Heródoto, com sua narrativa em prosa, afastando-se dos poemas puramente áulicos do Egito (ver por exemplo o poema da batalha de Kadesh) e dos monótonos e áridos anais do reino Assírio. A tradição histórica, que já pode ser encontrada nos livros bíblicos (Reis e Crônicas, por exemplo), prossegue com os latinos (Tito Livio, Tácito, Plínio, Amiano Marcelino, etc) e continua na Idade Média.
As
biografias são um gênero dessa mesma tradição que teve como representantes mais
conhecidos o romano Caio Suetônio (A Vida dos Césares) e o greco-romano
Plutarco (Vidas Paralelas dos grandes homens gregos e romanos).
A Igreja
católica, que recolheu a herança clássica, não apenas preservou os escritos
históricos antigos, como fez que fossem utilizados como obras de formação nas escolas medievais.
A visão da
história como algo linear, que começa com o Pecado Original e prossegue numa
sucessão de fatos que inevitavelmente terminará no Juízo Final, fez do mundo
cristão um campo fértil para o cultivo da memória e da prosa narrativa. Tivemos
historiadores cristãos desde os primeiros séculos (ver Eusébio de Cesaréia,
Sulpicio Severo e outros). Basta lembrarmos que a fé Cristã tem como
fundamento, não uma mera “doutrina”, mas fatos extraordinários e tremendos que
aconteceram em determinados momentos da linha histórica – nascimento, morte e
ressurreição de Cristo, Deus feito homem. Eis o porquê de quase metade de nosso
Novo Testamento ser composto por livros de narrativa factual e de S. Paulo ter
dito que “se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé”. No caso dos Atos, o seu
Prefácio segue o modelo grego de historiografia, e a precisão com que S. Lucas
utiliza os termos técnicos da geografia e da política faz dele um autor
criterioso e metódico, confiável em pequenos detalhes e, logo, nos grandes
fatos narrados.
Neste
modesto ensaio, ofereço ao leitor o comentário de uma obra biográfica muito
antiga no mundo medieval e sobre uma das personalidades mais importantes do
orbe cristão: Carlos Magno.
Poucos reis
tiveram um papel tão fundamental na construção de um Império, de uma unidade
política de povos e línguas diferentes, mas ligados por uma mesma religião. As
conquistas de Carlos, as suas relações com os Papas, seu ímpeto reformador,
forjaram o mundo latino-germânico que hoje conhecemos como Europa e que faz
projetos como a União Européia parecerem cada vez mais patéticos.
Embora
tenhamos incontáveis obras sobre a sua vida, a maioria delas escritas por
historiadores recentes, criteriosos e sérios, julgo válido trazermos à memória a
primeira descrição da vida de Carlos, feita por um seu contemporâneo, servidor e
amigo.
O Autor
Eginardo
(Einhart) nasceu no ano 770, aproximadamente, no Maingau, ou seja, na região banhada pelo rio Main. Era germânico e filho de Einhart e Engilfrid, pessoas distintas e abastadas, embora não
aristocráticas. Destinado, talvez, à vida clerical, recebeu instrução no
mosteiro de Fulda até que, em 791, o abade Baugolf o enviou a Aix-la-Chapelle
(atual Aachen), recomendando-o a Carlos.
Por Walafrid
Strabus, abade de Reichenau, em seu prefácio, sabemos que Eginardo foi um
oficial na corte de Carlos Magno, estando bem colocado e em posição de
descrever muitos fatos com exatidão.
Eginardo foi
membro da Escola Palatina, sob o pseudônimo Bezaliel (Carlos tinha o pseudônimo
de Davi; Alcuíno era Horácio), em referência ao artesão que é mencionado no
Antigo Testamento, responsável pela ourivesaria e adornos da Arca. É bem
provável que seu apelido indique habilidades em construção e outros trabalhos
manuais e, de fato, algumas fontes afirmam que ele dirigiu obras públicas,
embora o próprio Eginardo mantenha silêncio a esse respeito: não se trata de um
livro de memórias pessoais, mas de uma biografia de terceiro, por isso o autor não tem a preocupação
de se colocar nos eventos.
Após a morte
de Carlos Magno (814), Eginardo teve o favor de Luís, o Pio, seu sucessor. Em
815, casou-se com Emma, irmã do Bispo de Worms, porém seu casamento não o impediu
de ser beneficiário dos mosteiros de S. Pedro e S. Bavon (em Ghent), St.
Servais (em Maastricht) e St. Mandrille (em Fontenelle). Em suas terras
construiu uma igreja para a qual transportou várias relíquias, por que a
povoação ali surgida recebeu o nome de Seligenstadt.
Viúvo e de saúde
declinante, Eginardo faleceu no ano 840 – ele tinha 70 anos.
A Vida
Possivelmente,
Eginardo a escreveu antes do ano 836, pois sua Vita foi mencionada nas cartas do abade Servatus Lupus, não
datadas, mas que sabemos escritas entre 829 e 836.
A obra não é
longa, mas breve e sucinta, de uma sobriedade romana, adequada à brevidade dalíngua latina, que Eginardo escrevia e dominava virtuosamente.
A estrutura
básica é a seguinte:
1- Introdução e exposição de motivos;
2- As guerras e assuntos políticos;
3- A vida privada do Imperador;
4- Os últimos anos e a morte;
5- Disposições de última vontade.
Convém
lembrar que Eginardo chegou à corte de Carlos no ano 791, após os anos mais heroicos
e guerreiros do Imperador, e para escrever sobre aquele período, pesquisou os Annales Regni Francorum (Anais do Reino
dos Francos) e provavelmente colheu testemunhos de terceiros.
Para os
últimos capítulos, ele certamente pôde contar com sua própria experiência de
servidor e amigo de seu biografado, com quem conviveu por 23 anos, comendo á
sua mesa e participando de seu círculo de sábios e estudiosos - a famosa Escola
Palatina.
Eginardo,
conhecedor da literatura romana e latinista virtuoso, tomou por modelo uma das
mais famosas obras biográficas da antiguidade clássica: A Vida dos Césares, de
Caio Suetônio Tranquilo (75-140). Sabemos que no mosteiro de Fulda, onde
Eginardo recebeu sua formação, havia um exemplar da Vita de Suetônio, que ele deve ter lido e estudado atentamente. Suetônio
descreveu a vida de 12 Césares (de Júlio a Domiciano), tendo pesquisado anais e
documentos, alguns dos quais copiou ipsis
litteris; porém não era isento de exageros, motivados por sua tendência a tomar por verdade muitas fofocas e
anedotas.
A Vida de
Otávio Augusto, de Suetônio, e a Vida de Carlos Magno, de Eginardo, possuem a
mesma estrutura básica: começam com os primórdios da vida pública, passam às
guerras e aos feitos da política, e terminam com costumes da vida privada,
hábitos, morte e, por fim, testamento. Este último, presente apenas na Vida de
Augusto, reforça a certeza de que esta em especial serviu de modelo para a Vita Caroli. Além disso, os latinistas
afirmam que o estilo literário também é similar.
Em sua
introdução, Eginardo nos diz que Carlos foi seu patrono e senhor, e nos dá
duas razões para escrever aquela biografia: 1) perpetuar os feitos de Carlos
Magno, por medo de que aqueles acontecimentos caiam no esquecimento; e nisso
Eginardo se vê na posição privilegiada de contá-los com precisão, pois esteve
presente quando muitos deles aconteceram; 2) a amizade que o Imperador lhe
nutriu e que ambos cultivaram durante o tempo em que Eginardo viveu em sua
corte, amizade que o motiva a perpetuar em livro a “memória do maior e mais
distinto dos homens”.
Alguns podem
questionar o valor historiográfico da obra, tratando-a como um panegírico, uma
biografia de propaganda escrita por um oficial que muito se beneficiou de seu
biografado. De fato, Eginardo não é preciso em algumas passagens, comete alguns
erros de datação e parece omitir fatos sobre os quais ele sabe mais do que
demonstra, em suma, não seria “científico” pelos critérios da moderna Academia.
De fato,
para bem avaliar a obra, devemos ter em conta que os critérios de outras épocaseram diferentes, o que não os invalida necessariamente: os historiadores
antigos viam a historiografia como um modo de preservação da memória, mas
também como uma fonte de lições práticas. Afinal, foi para instruir as pessoas (sobretudo
seus filhos) nas virtudes e admoestá-las sobre os vícios, que Plutarco (46-120)
escreveu as vidas e exemplos dos homens gregos e romanos – que historiadores
valorizam como fontes até hoje. As Vidas
medievais, escritas por amigos ou parentes do biografado, também serviam como
uma permanente recordação do falecido numa época em que não havia filmes, nem fotografias:
daí muitas vezes a descrição detalhada de falas, de roupas e adornos, de hábitos
pessoais, etc., pois era uma maneira de formar um quadro vívido da pessoa a ser
lembrada.
É possível
que Eginardo tenha deixado muitas lacunas em sua Vita, que ele tenha escolhido escrever aspectos positivos de Carlos
e ignorado ou minimizado outros menos abonadores, contudo, em nenhum momento
faz de seu escrito um ditirambo. Não podemos negar a veracidade geral da obra –
confirmada por historiadores posteriores - e o fato de que o autor pesquisou
arquivos para relatar o que não viu, e deu um testemunho pessoal daquilo que
viu. Além disso, segundo Fichtenau:
“A História
da história de Carlos Magno começa com a Vida de Eginardo. Muitos dados
históricos sólidos se encontram em Eginardo e é inconcebível que um historiador
do reino carolíngio pense, algum dia, poder dispensar essa obra” (FICHTENAU, em
L’Empire Carolingien, apud GIORDANI, Mario Curtis. História dos Reinos Bárbaros, Vol II,
Vozes).
Um álbum de
fotografias, por preferir momentos felizes e omitir tristezas, nem por isso
deixa de passar uma imagem verdadeira, ainda que incompleta, da vida de uma
família ou de um indivíduo. E o mesmo podemos afirmar a respeito de Eginardo e
a primeira biografia daquele que “sem ter sido um santo que merecesse a glória
dos altares, [Carlos Magno] pode contudo ser considerado um herói cristão cuja
atuação constitui um marco imperecível na História da Civilização Ocidental”
(ver. GIORDANI, Mario Curtis, em História
dos Reinos Bárbaros, vol I, Ed. Vozes).
Por ser uma
obra pequena, sucinta e bem dividida, além de veraz, é excelente propedêutica
para os que querem iniciar o estudo do período Carolíngio ou simplesmente conhecer
a vida de Carlos Magno. Ademais, é um exemplo eminente de que o fim do período
romano não mergulhou a Europa numa barbárie, mas de que a romanitas foi cultivada e preservada: Eginardo, um latinista
germânico, escreveu baseado num modelo romano e num estilo erudito, testemunhando
a sobrevivência e o vigor da cultura clássica no período que a ignorância
moderna ousou chamar de Idade das Trevas.
*Referências
à obra com base na tradução inglesa da Vita
Caroli, editada pela Penguin Books em 1969 (Eginhard and Notker the
Stammerer - Two Lives of Charlemagne).
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