A vida que melhora
As invasões que devastaram a Europa cristã nos séculos VIII e IX levaram caos e
terror às populações do antigo Império de Carlos Magno e aos Saxões
recém-convertidos ao Cristianismo. Sarracenos e Mouros faziam suas razias ao
Sul da França e à Itália; os dinamarqueses levaram ferro e fogo à Irlanda, à
Inglaterra e à Francia, esta
entendida como a França Ocidental, a Lotaríngia e a França Oriental (Alemanha);
e os Húngaros – Magiares -, povo nômade do leste, com sua cavalaria veloz e
de táticas orientais, devastaram a Alemanha.
As derrotas
dos Escandinavos em batalhas campais e sua progressiva conversão; a vitória de Oto I sobre os Magiares em Lechfeld (955) e a conversão de seu rei, Santo Estêvão (1000 d. C); e o maior
controle sobre as terras meridionais - somado aos avanços da Reconquista -,
marcaram o fim de um período em que a energia dos povos da Europa foi
constantemente drenada por mortes, prejuízos incalculáveis, necessidade de
defesa, reconstrução de lugares e pagamento de Danegeld1.
As
Assembléias da Paz de Deus, cujo esboço aparece nos Concílios regionais de
Charroux (989) e Puy (991), contribuíram para apaziguar as lutas entre nobres
cristãos, quando a Igreja, usando de sua autoridade e sabedoria, soube enlaçar
aquelas classes guerreiras em redes de compromissos e juramentos que, muitas
vezes, forçavam até os mais belicosos a embainharem suas espadas2.
O século XI
foi palco de importantes avanços técnicos na agricultura: o arado de ferro, adequado às terras do Norte, sulcava mais fundo; o moinho hidráulico
otimizou a moenda e o armazenamento de grãos, além de liberar pessoas para
outras atividades; o cultivo da aveia, mais nutritiva que a cevada, melhorou as
condições de alimentação; o cavalo de tiro e inovações no sistema de rotação de
colheitas elevaram a produtividade em mais de 50% nalgumas regiões.
Nem se podem
esquecer os arroteamentos e o avanço da agricultura sobre pântanos e
florestas, que a energia laboriosa do camponês transformou em terras
produtivas. No ritmo dessa colonização de terras virgens, milhares migraram
para a Germânia oriental, para além do Reno e do Elba, na chamada Drang Nach Osten (a grande expansão para
o Leste) transformando a Alemanha dos séculos XII e XIII no grande celeiro
europeu, que exportava trigo pelos rios e portos do Mar do
Norte.
Além disso,
os séculos X ao XIV foram de temperaturas elevadas: o calor favorecia o cultivo
de grãos em regiões tão setentrionais como a Noruega; ainda era
possível cultivar uvas e produzir vinho na Inglaterra.
A população
estava em pleno crescimento e a taxa de natalidade era maior do que a de
mortalidade. As epidemias diminuíram e a fome rareou, chegando a ser
erradicada em muitas regiões3. O comércio crescia, a atividade dos
piratas muçulmanos diminuía; malgrado os perigos, em todos os anos do século
XI, milhares de peregrinos cristãos fizeram a viagem aos Lugares Santos.
A pujança
comercial e agrícola perdurou pelos séculos XII e XIII, com o aumento do
comércio de longa distância, o estabelecimento das Feiras de Champanhe e o desenvolvimento da atividade bancária pelas grandes Casas Comerciais italianas
(Bardi, Peruzzi, Ricciardi); em 1284 os navios começaram a fazer a rota direta
do Mediterrâneo para o Mar do Norte, e os Genoveses e Venezianos tinham
entrepostos comerciais tão longínquos quanto o Mar Negro.
As Aflições
No final do
século XIII havia sinais de crise: enchentes, más colheitas e epidemias que
mataram rebanhos. O Mar Báltico congelou nos anos 1296 e 1306, sinal de
invernos mais rigorosos, prelúdio da chamada Pequena Era
Glacial (Séculos XVI/XVII): a cultura do trigo foi inviabilizada na Noruega, e
a vinicultura tornou-se impossível na Inglaterra.
Em 1301 houve
fome em Castela, e em 1309-1311 era a vez da Alemanha; as chuvas excessivas do
verão de 1315 arruinaram as colheitas de outono; a persistência das mesmas acabou com a maior parte da semeadura e reduziu a colheita do verão de 1316:
era a Grande Fome (1315-1317), que matou 10% da população de Flandres e
Inglaterra, marcando o fim do crescimento populacional no Noroeste Europeu. Em
1322, Paris foi assolada pela carestia, e em 1345-1346 foi a vez do
Sul da Europa sofrer com a fome generalizada4.
Malgrado
esses acidentes naturais e o começo da Guerra dos Cem Anos (1337-1453),
ainda havia boas expectativas: às vésperas da maior epidemia já vista, várias
cidades européias – Bruges, Florença, Lisboa, Estrasburgo – realizavam obras
públicas e expandiam suas muralhas, indicando otimismo e perspectiva de aumento
populacional. Com a aproximação do ano de 1350, preparavam-se também as festividades
do Jubileu em Roma, que esperava multidões de peregrinos. Ninguém imaginava o
que estava por vir.
A Peste
Epidemias
aconteceram em vários momentos da história, e na Idade Média não houve exceção,
embora se deva apartar do clichê de apresentá-la como uma época de peste, fome
e guerra constantes, em que as pessoas eram mal nutridas e morriam aos 30 anos
– talvez isso seja assunto para outro texto.
As epidemias
eram chamadas de “pestilências” ou “mortalidades”. A Peste Negra (este termo
não é medieval, mas do século XVI) já havia feito uma aparição no final século
VI, mas sumiu tão misteriosamente como foi o seu retorno sete séculos mais
tarde. Ressurgiu a partir do Lago Balkash, na Ásia Central, e as fontes mostram
vilarejos abandonados naquela região. A Peste chegou à Europa
no verão de 1347, manifestando-se no entreposto genovês de Caffa, no Mar Negro. Provenientes de Caffa, navios genoveses aportaram em Messina – Sul da Itália – no mês de setembro, já com
doentes a bordo. Quando se compreendeu a gravidade daquela doença, era
tarde: seguindo viagem, os navios infectaram Gênova e, em seguida, Marselha
(01.11.1347).
A Peste se
espalhava a partir dos portos e das rotas terrestres: de Marselha propagou-se ao longo do rio Ródano e alcançou Avignon já no começo de 1348; antes
de março, atingiu Arles, Carcassonne, Perpignan e Nîmes. Navios de
Bordeaux infectaram Londres (07.07.1348) e Rouen
(25.07.1348), de onde a doença passou a Paris. Sob a ocupação inglesa, Calais
foi infectada no Natal, a partir de seus contatos com a Inglaterra5;
Valência e Sevilha foram portas de entrada para a Espanha, onde a peste se
propagou pelo Caminho de Santiago. A Noruega se contaminou por um navio vindo
da Dinamarca, e a Rússia, pelo entreposto comercial de Novgorod6.
A faculdade
de medicina da Universidade de Paris recomendou a fuga como uma maneira eficaz
de evitar a Peste, mas em muitos casos isso favoreceu a sua difusão, pois as rotas dos refugiados eram as mesmas de exércitos e mercadores.
É difícil
precisar o balanço de mortes, visto que os registros civis eram
raros e incompletos, e a Igreja não anotava batizados, casamentos e óbitos
antes de o Concílio de Trento (1545-1563) fazer disso uma obrigação.
Alguns padres mantinham registros, mas sua iniciativa não era regra: na paróquia de Givry (na Borgonha), é possível seguir o dia a dia da Peste graças ao livro em que o Cura anotava casamentos e óbitos; ali constam 649 mortos numa paróquia de aproximadamente 2.000 almas7. Algumas cidades podiam fazer censos, mas não era algo regular. Para o clero, tem-se um número mais preciso de mortalidade: por exemplo, para a Diocese de Lincoln, na Inglaterra, é possível saber que a mortalidade atingiu 35% dos clérigos incardinados (padres com benefícios, titulares de paróquias, etc); registros de alguns domínios agrícolas, como o de Holwesen, nos Middlands ingleses, mostram que, no ano de 1348, 46% dos rendeiros morreram8. A Abadia de Saint-Martin de Tournai, na França, perdeu 80% de seus monges entre 1348 e 1362. Em Montpellier, de 140 frades dominicanos de um convento, apenas 7 sobreviveram.
A Peste foi
a grande responsável pelo declínio populacional europeu dos cem anos seguintes.
No começo do século XV, a França (que não correspondia geograficamente à França
atual) tinha 8 milhões de habitantes, contra os 17 milhões do ano 1328 (segundo
o censo de paróquias e lares feitos naquele ano); a Inglaterra viu sua
população diminuir de 3 milhões em 1330 para pouco mais de 1 milhão no século
XV (o que se refletiu no tamanho dos exércitos enviados para a França nas campanhas que se seguiram à tomada de Calais, em 1347); a Noruega, que tinha 425 mil habitantes em 1330, contava apenas 125 mil em
1430. Os níveis populacionais pré-epidemia só foram alcançados novamente no século
XVI9.
Portugal não
se recuperou totalmente dos efeitos demográficos da Peste e foi devido à sua
bravura, flexibilidade e capacidade de miscigenação que aquele pequeno povo
conseguiu conquistar os trópicos e do mundo a Deus dar parte grande.
A Morte
O mundo
ocidental moderno perdeu a arte de morrer, a noção do rito mortuário, que na
Idade Média se revestia de solenidade e obedecia a uma ordem. A morte solitária
era algo tão temido quanto estranho, assim como a solidão em si: o homem
medieval vivia cercado de seus semelhantes, estava inserido numa família, numa
casa senhorial, numa confraria pia, numa paróquia. Até a figura do cavaleiro
solitário, tão presente na ficção romântica, era algo estranho ao homem daquele
tempo.
Morrer era
um ritual, “o ritual da morte à maneira antiga, que não era uma fuga, nem uma
saída furtiva, mas algo que se aproximava lentamente, conforme regras bem
definidas, sendo prelúdio da mudança de um estado a outro, superior, uma
transição tão pública como as núpcias, tão majestosa quanto a entrada dos reis
em suas cidades. Essa é a morte que perdemos de vista, e que talvez nos faça um
pouco de falta”. (DUBY, Georges. Guillaume le Marechal. Fayard, 1984, p.10).
Duby
descrevia a morte de um grande cavaleiro, Guilherme, Conde de Pembroke, um
homem que servira a cinco reis sucessivamente, que tinha ascendido na sociedade
de seu tempo para desfrutar do convívio dos grandes. Morrendo idoso, em suas
terras, seus dias finais foram marcados por sucessivas visitas de Abades,
Bispos e nobres; notários redigiram seu testamento, doações e legados foram
estabelecidos, esmolas foram distribuídas, centenas de pobres banquetearam-se em
seu pátio; um sacerdote o escutou em confissão, deu-lhe absolvição e viático;
as mulheres de sua família o prantearam*, o moribundo dirigiu últimas palavras e
exortações a parentes e amigos. No fim, morreu, e seu corpo foi trasladado para
descanso perpétuo na igreja da Comendadoria dos Templários em Londres. Era o
ano 1219.
Grandiosa
como tenha sido a morte daquele grande cavaleiro, Cruzado prestigiado, servidor
de reis e rainhas, lorde defensor da Inglaterra, em essência ela não diferia daquela
dos homens comuns, fossem camponeses ou burgueses:
“Por volta
de 1300, a morte cristã é um fato bem estabelecido. A boa morte tem suas
regras; morre-se em casa, cercado de parentes e vizinhos; o padre recebe a
confissão e dá o viático; o corpo do morto é lavado, velado, enrolado num
lençol (o caixão ainda é raro) e em seguida conduzido em cortejo à sua morada
final (cemitério ou igreja)” (DERMURGER, Alain. L’Occident Médiéval XIII-XV Siècle. Hachette Supérieur, Paris,
2003, p.88).
Para os
vivos restava a continuação do rito através do luto, marcado pelas missas de
sétimo e trigésimo dia, e finalmente pela Missa de um ano (chamada em França de
Bout de l’An), que serviam para
sufrágio do morto e consolação dos vivos.
Essa morte
ritual foi bruscamente perturbada pela irrupção da Peste de 1347-1350. Doença
de fácil contágio e letalidade inclemente, em sua forma bubônica matava em
questão de semanas: na forma pneumática, era fulminante, sobrevindo morte em menos
de três dias; havia ainda outra manifestação da Peste, tão misteriosa quanto
súbita, quando a vítima dormia sã para não mais acordar.
A morte ruim,
imprevista, sem preparo, sem confissão, era aterrorizante aos homens de um
mundo ainda católico. Pela primeira vez na história, milhões de homens e
mulheres morreram isolados, sem a presença de parentes e amigos – não raro
estando estes já mortos -, destinados a uma cova coletiva ou, pior, a nenhuma.
Saía-se do mundo dos vivos, mas sem que estes se mantivessem em contato, sem um
túmulo a ser visitado, sem notícias, sem preces e missas rezadas em sua
intenção particular, sem o luto tradicional e, não raro e mais pavoroso, sem
sacramentos. Muitos padres atenderam aos empestados, mas inevitavelmente
contraíram a doença morreram; os padres menos zelosos fugiram, abandonando
almas para salvar a carne.
De fato, o efeito
mais devastador da Peste foi o de ter rompido velhas estruturas sociais: as
Missas e grandes festas paroquiais, que faziam a graça e o colorido da vida
social e religiosa, com suas bandeirolas, procissões de velas, festas regadas a
cerveja, fogueiras do solstício de verão, cirandas e Maypoles10, sofreram interrupção; aldeias tornaram-se lugares fantasmas e desapareceram como povoações; regiões ficaram desertas,
não por um ou dois anos, mas por décadas; famílias foram destruídas e outras foram separadas pelas fugas
desesperadas.
Isso lançou
os homens e mulheres da época em grande angústia social e espiritual, levou ao
desenraizamento e ao sentimento de isolamento numa época em que viver sozinho,
atomizado, não fazia o menor sentido.
A visão da morte e novos laços
sociais
O trauma
social e espiritual causado pela Peste foi uma das causas da crise do fim da
Idade Média, que nada tem a ver com “crise do feudalismo” ou “crise do modo de
produção feudal” de que falam os marxistas. O feudalismo estava bastante modificado
antes mesmo do século XIV, e embora as implicações econômicas da Peste tenham
sido inúmeras e profundas, não é delas que este texto pretende tratar.
Como efeito, a Peste trouxe uma mortandade nunca vista, em que pessoas morreram
numa escala inaudita, rápida e bruscamente. Isso destruiu famílias,
despovoou aldeias e regiões, deslocou os sobreviventes e rompeu o rito
tradicional da morte e do luto.
A visão da
morte na Idade Média era a de algo a ser meditado e temido na medida em que o
indivíduo a encontrava desprevenido. Os frades mendicantes, em especial os
Franciscanos, sempre enfatizaram a meditação da morte e do juízo: uma das mais
belas Seqüências da Missa Romana, o Dies
Irae, cantado na Missa para os mortos, foi composto por um companheiro de
São Francisco, no século XIII.
Eamon Duffy,
em seu livro The Stripping of the Altars,
talvez o mais amplo estudo já feito sobre a religião na Inglaterra do final da Idade
Média, citando A. Galpern (estudioso da religião na França dos séculos XV-XVI),
diz que a vida religiosa da época era um permanente culto dos vivos a serviço
dos mortos, ou seja, muito da devoção e dos atos piedosos visavam ao benefício
das almas dos falecidos.
"Antes do ano 1300, o Juízo Final, coletivo e distante no tempo, não causava grandes inquietações; mas face à morte ruim, imprevista, o homem necessita de precauções, e a idéia de que passaria por um juízo particular, logo após a morte, ganha força" (DERMUGER, op. cit, p. 89).
A
preocupação máxima do clero e do laicato, do camponês ao príncipe, era apenas
uma: uma transição segura para a outra vida. Isso moldou a hierarquia e até o
desenho de muitas igrejas nos últimos dois séculos do que se entende por Idade
Média. Foi, sobretudo, a crença na eficácia das Missas para aplacar o
Purgatório que esteve por trás da grande quantidade de Ordenações sacerdotais ocorridas na
Inglaterra do fim do século XIV e século XV, gerando um exército de padres sem
paróquias, que viviam basicamente de espórtulas de Missas ou atrelados a um Chantry11. Tudo isso, latente
numa sociedade católica, foi potencializado pela Peste.
Contudo, não
havia a obsessão pela morte e pelo grotesco que Jan Huizinga menciona em seu
imortal Outono da Idade Média: embora
a asserção de que a vida do fim da Idade Média era um contínuo memento mori seja, em essência,
verdadeira, muito de suas conclusões podem ser exageradas.
O obséquio
pelos mortos não era sinal de uma vida mórbida, de gosto pelo macabro, nem de
uma polarização entre lamento pela brevidade da vida e júbilo pelo Céu, como
pensava Huizinga. O final da Idade Média produziu uma imagem da morte bastante forte,
sim, com esqueletos, cadáveres decompostos e vermes, mas as concepções não se
restringiam a isso.
O estudo que
Duffy fez dos testamentos escritos naquele período mostrou que seus redatores
não eram obcecados por morte e tristeza: a descrição detalhada de bens, a
destinação dos objetos mais queridos, o cuidado com os parentes que ficavam, a
disposição sobre esmolas e Missas a serem rezadas após a morte, tudo mostra
que as pessoas também sabiam ter alegrias no viver e senso prático no dispor de
seus bens, sobretudo usando parte deles para a caridade e a salvação.
A Peste
gerou a representação mais assustadora da Dança
Macabra e dos Transi, mas essas
figuras eram uma tática de choque, chamando à conversão pela exposição
crua da brevidade e corruptibilidade da vida. A primeira é uma representação surgida no Norte (França e Alemanha), em que três homens (representando três estamentos: nobreza, clero e comuns) dançam com três cadáveres em putrefação (a Europa do sul, mais delicada, prefere a imagem do esqueleto), mostrando que a morte era implacável com todos. Foi pintada em muitos cemitérios e igrejas ao longo do século XV. Já os Transi, imagens sobre as tumbas que representavam o falecido em
decomposição, longe de denotarem um gosto pelo bizarro, eram maneiras de
comover quem por ali passasse, movendo o transeunte à oração pelo defunto
jacente, cujo nome era escrito junto com um pedido de preces12.
S. Thomas
More, em um de seus textos, faz uma descrição detalhada e bruta da morte
corporal, só para em seguida dizer que a evocação dessa imagem de nada serve se
não mover o leitor/ouvinte a pensar na sua própria morte e nos Novíssimos13. A consideração da morte em seus aspectos mais crus tinha um propósito superior.
Novamente: a
Peste não criou, mas reforçou a meditação sobre os últimos eventos da vida –
Novíssimos -, principalmente pela alta mortalidade e pela rapidez com que
matava. A morte imprevista aterrorizava os cristãos: surgiram inúmeras devoções
a santos que podiam proteger da morte súbita ou que avisavam de sua proximidade, como S. Cristóvão e S. Sebastião (invocado contra pestes desde o
século VII), e também S. Gilles, na França; recorria-se à Virgem Maria, cujo manto protetor se estendia a
todos os pecadores que lhe acorressem - ver a representação no retábulo pintado por Piero de la Francesca, em 1445.
Multiplicaram-se os "sanctuaires à répit", lugares santos onde se acreditava poder trazer temporariamente à vida um bebê natimorto, a fim de batizá-lo e garantir-lhe a vida jubilosa no Céu - em vez da felicidade inocente, mas fria das alminhas descidas ao Limbo.
Uma anedota inglesa, de milagres atribuídos ao Rei Henrique VI, conta que, quando Richard ap Meredith foi ferido por lança na batalha de Barnet (1489), os combatentes ao redor rezaram a Santo Henrique VI, não tanto pela recuperação do ferido , mas para que vivesse até que um padre ouvisse sua confissão. Na visitação diocesana do ano 1511, os fiéis da Diocese de Canterbury se queixaram de que certos padres não viviam em suas paróquias, ou que dormiam longe, causando transtornos quando era preciso encontrar confessor para um moribundo no meio da noite14.
Uma das
respostas ao ambiente de incertezas, ao medo de uma doença que podia matar
subitamente, à solidão resultante da perda de familiares, foi a constituição
das Confrarias pias.
A associação
de pessoas era uma marca da Idade Média: os homens viviam em família, os nobres
tinham amplos laços familiares, os camponeses sabiam se organizar para
trabalhar a terra comum, os monges viviam em comunidades, os artesãos se
associavam em corporações de ofício. As Ordens Mendicantes (Franciscanos e
Dominicanos) criaram confrarias – Ordens Terceiras – para associar os leigos à
sua espiritualidade e aos privilégios que lhes eram concedidos, mas aos poucos
surgiram aquelas associações que não estavam ligadas a uma Ordem religiosa
regular. A Peste não criou as Confrarias, mas ajudou a multiplicar o seu
número, que aumentou exponencialmente após o ano 1350.
O período
que vai de 1350 a 1500 é considerado a Era de Ouro das Confrarias: em geral,
cada paróquia rural tinha uma, no mínimo; nas cidades seu número ainda era
maior e podia chegar à centena – Rouen chegou a ter 131 Confrarias religiosas e
Londres 15015.
As
Confrarias reuniam pessoas que se associavam para uma devoção em comum: essas
associações cultuavam um Santo patrono, realizavam certos atos de piedade e,
principalmente, cuidavam dos seus membros espiritualmente, provendo-os dos
cuidados após a morte – sepultamento cristão e sufrágios por sua
alma.
“Com algumas
variações, todas as Confrarias do final da Idade Média eram constituídas de
modo semelhante e serviam às mesmas funções básicas: manutenção da luz do
sacrário e de velas perante as imagens de sua devoção; comparecimento aos
funerais dos membros defuntos, realização de preces e encomenda de Missas pelas
almas dos falecidos; finalmente, exercício da caridade e da sociabilidade na
festa anual do padroeiro” (DUFFY, Eamon. The Stripping of the Altars – Traditional Religion in England 1400-1580. Yale
University Press, 2005, p. 143, tradução livre).
Para além de
sua diversidade de culto e de práticas, as Confrarias tinham característica
comum de culto à memória de seus defuntos, que eram lembrados nas preces, nos
jejuns, nas esmolas; se o moribundo não tivesse familiares próximos, não havia
por que se angustiar: a Confraria o assistiria na morte e encomendaria suas exéquias
e Missas de costume; algumas chegavam a encomendar trinta missas nos três meses
seguintes ao falecimento de cada membro; anualmente pelo menos uma missa seria
rezada em sua intenção, seu nome constaria na lista dos membros falecidos por
quem a Confraria rezaria pelo tempo que durasse.
Enraizadas
na sociedade, as Confrarias também eram profundamente vinculadas à vida da
Igreja institucional, não sendo um modo de devoção extra ecclesia. Faziam parte da vida paroquial, sendo-lhe
profundamente ligadas: os membros das Confrarias frequentavam as igrejas,
ouviam as Missas, enchiam as procissões com seus estandartes e emblemas
coloridos, encarregavam-se de tarefas como prover a paróquia de velas, de
manter um vitral ou mesmo de organizar uma Church
Ale (fabricação de cerveja para vender nas quermesses e arrecadar dinheiro
para a paróquia).
Conclusão
Após três
séculos de crescimento incessante, de pujança agrícola e demográfica, a Europa
medieval chegou a um ponto de declínio, em que o advento de mudanças
climáticas, epidemias e guerras cada vez menos cavalheirescas fizeram pairar
uma sombra sobre a Cristandade. O principal campo a ser afetado pela alta
mortandade foi a relação dos cristãos com o rito da boa morte e do luto, bem
como os vínculos tradicionais de solidariedade.
Mesmo após o
seu desaparecimento súbito nos idos de 1350/51, os efeitos da Peste eram
pungentes demais para não afetarem os sobreviventes: estes responderam de
diversas maneiras, ora com hedonismo, ora com a praticidade típica do camponês,
com a simples continuidade da vida: na paróquia de Givry houve um
frenesi de casamentos e novos batizados nos anos seguintes à doença que ceifara
quase metade de seus habitantes.
A Peste retornaria subitamente em 1360-1363, vitimando principalmente crianças e adolescentes – justamente aqueles que eram a esperança de uma recuperação demográfica -, e ainda faria aparições esporádicas por longos anos.
O advento do Nominalismo, o Grande Cisma, a decadência do ideal de
Cavalaria, etc., eram problemas que já expunham rachaduras no edifício da Cristandade.
Por outro lado, a pujança e vigor da religiosidade católica eram inegáveis,
como demonstra a obra de Duffy, e ainda seriam necessários 150 anos para que o
edifício desmoronasse, ou melhor, para que fosse derrubado por forças políticas
e religiosas organizadas.
O homem
católico, abalado pelo trauma da Peste, deu uma resposta às incertezas da vida,
à morte improvisa e à destruição de diversos laços sociais, por meio de uma
religiosidade cada vez mais centrada na preparação para a morte e Juízo
Particular; ao desenraizamento e à perda de suas famílias, as pessoas responderam
com a constituição de Confrarias pias que podiam fazer vezes de uma família
inexistente ou distante, dando ao fiel a certeza de que, em seu leito de morte,
teria a presença de uma comunidade espiritual e, em seu Purgatório, o benefício de esmolas, preces e Missas, cujos méritos maravilhosamente se distribuem por
meio da Comunhão dos Santos. A sociedade católica conseguia curar suas próprias
feridas e renovar-se sem rupturas com a Tradição.
Notas:
* Para compreender o papel das mulheres no luto, ver o artigo "A Dor da Perda: As Mulheres e o Luto na História", publicado em COSTA, Ricardo. Impressões da Idade Média, Editoras Armada e Resistência Cultural, SP, 2017.
1- 1-Danegeld:
literalmente, “dinheiro dos dinamarqueses”; valor que mosteiros e cidades
pagavam aos chefes vikings para que se abstivessem de atacá-los. Era o atual “não
reaja e entregue tudo”. Pagãos sem honra como eram, não raro os vikings
recebiam o dinheiro, mas atacavam mesmo assim.
2- 2-Ver PERROY, Edouard, in História Geral das Civilizações – Volume VII,
org. Maurice Crouzet. Ed. Bertrand Brasil, 1994.
3- 3-Ibidem.
4- 4-DEMURGER, Alain. L’Occident Médiéval – XIIIe-XVe Siècle. Hachette Supérieur. Paris,
2003, p. 60.
5- 5-FAVIER, Jean (org). La France Médiévale. Fayard, Paris,
1983, p. 81.
6- 6-DEMURGER, Alain. Op.cit. p. 78.
7- 7-FAVIER, Jean. Op.cit. p. 82
8- 8-DEMURGER, Alain. Op cit. p.61
9- 9-Ibidem, p. 63.
10 – Maypole: mastro que as pessoas erguiam nas cidades e aldeias, enfeitando-o com guirlandas de flores e fitas coloridas. Indicavam a alegria com a primavera e a proximidade do verão. Em alguns lugares eram erguidos em Maio, noutros em Junho, próximo ao Solstício de Verão, à festa de S. João.
11 11 -DUFFY, Eamon. The Stripping of the Altars – Traditional Religion in England 1400-1580. Yale University Press, 2005, p.301. Chantries eram dotações constituídas para proveito da alma de um fiel, que ao morrer deixava dinheiro para que um determinado padre dissesse missas em seu sufrágio. Às vezes o Chantry se constituía em determinado altar de uma igreja ou em uma capela privada.
12 – Ibidem
p. 307.
13 – Ibidem p. 308. “Novíssimos”: Morte, Juízo, Céu e Inferno,
ou seja, as últimas coisas que hão de advir ao homem.
14- DUFFY. E.
Op.cit.
15 – DEMURGER
e DUFFY. Op.cit.
Referências Bibliográficas:
DEMURGER,
Alain. L’Occident Médiéval – XIIIe-XVe
Siècle. Hachette Supérieur. Paris, 2003.
DUBY,
Georges. Guillaume Le Maréchal.
Fayard, Paris, 1984.
DUFFY, Eamon.
The Stripping of the Altars – Traditional
Religion in England 1400-1580. Yale University Press, 2005.
FAVIER, Jean
(org). La France Médiévale. Fayard,
1983.
HOLMES, George. The Oxford History of Medieval Europe. Oxford University Press, 2001.
HUIZINGA, Jan. The Waning of the Middle Ages. Dover
Publications, 1924.
PERROY, Edouard e CROUZET, Maurice (org). História Geral das Civilizações – Vol II.
Ed. Bertrand Brasil, 1994.
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