A literatura medieval tem, dentre suas obras, canções e sagas de origem remota, nascidas entre povos germânicos habitantes da Escandinávia, banhada pelo Báltico cinzento e frio. Aquela terra era a pátria original dos germânicos, que se difundiram pelas planícies baixas da Holanda, pelos rios Weser, Elba e Reno, chegando ao Danúbio e ao Dniester e, no caso dos Ostrogodos, às planícies do rio Don, terra que se avizinhava à dos Alanos, montadores de cavalos.
A cultura oral germânica tinha uma mitologia
própria, mas, em alguns aspectos, similar à de outros povos indo-europeus, por
razão de sua origem comum. As grandes sagas e lendas estavam vivas e em plena
tradição no tempo em que aquela gente bárbara - compósito de Alanos, Suevos,
Burgúndios e Vândalos, carroças a carregar mulheres e crianças -, impelida pela necessidade
e pela Providência, ousou atravessar a pé enxuto o Reno congelado naquele
escuro 31 de dezembro do ano 406.
As batalhas a que se livraram deram matéria a
diversos cantos ouvidos em salões, preservados pela tradição oral, modificados
posteriormente e adaptados à paisagem feudal ou aos ideais de épocas futuras.
Tal foi o destino da Nibelungenlied (c.a
1200), lenda originária de dupla matéria, Franca e Burgúndia: a briga entre
duas rainhas pode ter sido inspirada na luta entre Fredegunda e Brunilda
(século VI); o desastre dos Nibelungos, resultado daquela arenga, teve como
matéria o trágico destino dos Burgúndios e de seu Rei, Gundahar (Günther),
quando foram massacrados pelas tropas de mercenários hunos que no ano 436
estavam ainda a serviço de Roma.
Um desses poemas de origem germânica, que sobreviveu
até nossos dias, é a canção de Beowulf,
originária da Escandinávia do sul, provavelmente da Dinamarca. De lá partiram
os Anglos e os Jutos, que juntamente com os Saxões invadiram e colonizaram a
Bretanha: esta se germanizou; a Romanidade e o Cristianismo desapareceram com
os celtas originais, que se refugiaram em Gales ou atravessaram o Canal para
aportarem nas praias da Armórica Ocidental (atual Bretanha francesa).
A lenda de Beowulf
foi certamente levada pelos invasores, cantada em seus salões de hidromel,
transmitindo uma cosmologia mítica e valores heroicos cultivados por aquelas
sociedades fundadas na relação entre Senhores (earls) e guerreiros (thanes).
A versão que temos é baseada num manuscrito do ano 1000, mas segundo
especialistas como J.R.R Tolkien, o Poema como o conhecemos já estava
consolidado no ano 750. Ele era recitado nos salões nobres, em meio a festejos,
e é provável que em três noites se ouvisse o Poema inteiro.
Beowulf
foi muito escutado nas cortes dos reis saxões até o século XI, quando o último
rei daquela raça, Santo Eduardo, morreu sem deixar herdeiros e a Inglaterra foi
conquistada pelos Normandos falantes do francês antigo. Com a conquista, a
língua saxã caiu progressivamente em desuso e seus poemas, na obscuridade.
Neste ensaio, mostraremos que a lenda de Beowulf mantém
as verdades eternas que transmitia originalmente e que foi redigida por um
cristão, no contexto de uma Inglaterra Saxã e Cristã, o que a torna diferente
de outras lendas nórdicas.
Bem-vindo ao Salão do senhor destas terras. Convido
o leitor a deixar as armas à soleira e entrar acomodando-se num banco de
carvalho, pois o dia cai e o fogo aquece e aclara; aceite o leitor a cerveja
que a Senhora oferece, pois é costume que ela ofereça a prima copa ao convidado
de honra. Eia! Da harpa já emana a melodia e do menestrel a voz ressoa,
cantando o começo da Criação, quando antes dos séculos ao caos sobreveio a
ordem, e das águas uma criancinha aportou na terra dos daneses de malhas aneladas,
bem-feitas e tilintantes.
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Salão Anglo-Saxão |
Resumo da Canção
O poema começa a exemplo dos grandes épicos outrora
cantados para audiências: com uma interjeição que visava a chamar a atenção dos
presentes, algo como “Hei”, na Canção
dos Nibelungos, ou como Ahoi!, na
Canção de Rolando, ou “Lo”, em outros
poemas escritos ou traduzidos em inglês. O poeta fala brevemente sobre aquilo
que lendas de outrora disseram sobre reis e heróis – introdução comum em outras
Canções.
Eis que aos daneses (dinamarqueses) chegou por mar
um bebê, chamado Scyld, desconhecido e nu, que se tornaria rei daquela gente,
privando os inimigos de seus salões de bebida e impondo seu governo sobre
tribos.
Tendo morrido, seu corpo foi colocado no interior de
um barco ricamente adornado e provido de tesouros, o qual foi posto à deriva até
desaparecer no horizonte.
Seus sucessores foram Beow, Halfdaen, Heorogar e
Hrothgrar, estes últimos irmãos.
A Hrothgar foram concedidos sucesso em batalhas e
reinado pacífico, lealdade de guerreiros e tesouros opulentos; então veio à
mente daquele rei construir um grande Salão, o maior de todos já erguidos por
homens, onde se distribuíssem anéis e tesouros, comessem e bebessem os mais
valorosos guerreiros , jovens e velhos. E assim se fez Heorot, salão elevado,
com beirais cornudos e dourados, maravilha da Terra Média (midden yeard).
De Heorot ecoavam risos e vozes, a música do
harpista e o canto do menestrel, contando como no início de tudo Deus formara a
Terra, circundada pelos mares, e como elevara os dois lumiares, Sol e Lua, que
aclarassem os seus habitantes; como de vegetações e folhagens provera a terra
árida, e concedera vida a todo o que anda e rasteja.
Porém, a alegria desapercebida excitou o rancor do
inimigo infernal, Grendel, espírito maligno, habitante de pântanos e charnecas brumosas:
era ele descendente da raça de Cain, homicida, por que ele e os seus viviam
apartados dos homens, castigados que foram por Deus.
Ao cair da noite veio Grendel ao grande Salão,
Heorot, e entrando tomou quantos guerreiros quis e os devorou, saciando seu
apetite incontinente, conspurcando a sala sagrada com sangue e vísceras.
Não havia quem matasse o monstro infernal; muitos
guerreiros, uns experimentados, outros exaltados pela cerveja, tentaram
provar-se contra ele e encontraram sua ruína. Por doze invernos a desolação de
Grendel pairou sobre Heorot, de onde desapareceram a alegria, a luz e as
companhias de guerreiros.
Da terra dos Gautas, na atual Suécia, veio Beowulf,
filho de Edgetheow, herói com a força de trinta homens. Ao saber da desolação
de Heorot, decidiu empreender viagem até o rei Hrothgar, para o qual mataria
Grendel ou morreria tentando. Beowulf e seus quatorze companheiros
desembarcaram na terra dos daneses e seguiram para Heorot, onde Hrothgar os
acolheu. Beowulf, naquela mesma noite, lutou contra Grendel sem armas; sem
couraça ele o matou, pois o monstro era invulnerável por ferro.
A morte de Grendel devolveu brilho e música a
Heorot, onde todos voltaram a se banquetear. Contudo, nova ameaça surgiu dos
mundos infernais quando uma Ogra, mãe de Grendel, atacou o salão durante a
noite, matando um danês, Ashhere, e levando sua cabeça. Por um pedido de
Hrothgar, Beowulf aceitou enfrentar o novo inimigo, mergulhando até seus
domínios aquáticos, onde travou uma luta difícil que só foi vencida pela ajuda de
Deus. Com efeito, a espada que Beowulf levava, dada a ele por Unferth, não funcionou
e de Deus teve que receber aquela que usou para matar o monstro. Tendo
ressurgido das águas, Beowulf consolidou a vitória e a paz em Heorot.
Em sua terra, Beowulf contou seus feitos ao tio, Hygelac, que logo
morreria em batalha na embocadura do Reno. A viúva, Hygd, ofereceu o trono a
Beowulf, mas este declinou em favor do legítimo herdeiro, seu primo Heardred,
ainda uma criança. Mas quando Heardred morreu em batalha a que deu causa, a
falta de herdeiros deu o reino a Beowulf, que o assumiu naturalmente e em paz
reinou por 50 invernos.
A parte final é elegíaca, solene e pessimista. Sobre
um tesouro antigo, de reis falecidos, de um povo desaparecido, passou a viver
um Dragão. Este, tendo uma taça do tesouro roubada por um servo em fuga,
vingou-se assolando regiões inteiras do reino de Beowulf - inclusive seu Salão
- que decidiu enfrentá-lo em defesa de seu povo. Com uma companhia de doze homens,
Beowulf adentrou o covil do dragão, mas, desertado por todos menos por Wiglaf,
travou uma luta difícil na qual teve a vitória e a morte. Seu discurso final,
nos estertores da vida, dá graças a Deus por suas vitórias e por ter vivido de
modo justo e honrado. Os seus funerais são uma imagem triste e sombria do fim de
uma linhagem e profetiza o advento de guerras e ruínas para o povo desprovido
de um rei protetor.
Mito
e Cristianismo
É próprio do Mito traduzir em linguagem poética os
mistérios mais profundos e as verdades eternas, imutáveis. E é próprio do Épico
trazer essas verdades com figuras que variam conforme os povos que o
transmitem. De modo geral, o Épico traz uma cosmovisão inserida dentro de um
poema em que vemos verdades como a Criação, a luta da Ordem contra o Caos, a
Matéria contra o Espírito, o nascimento, crescimento e ocaso de uma
civilização.
A Canção de Beowulf tem as características da poesia
épica: tem objetividade, ação, unidade de ethos
e grande alcance. Ao lermos o poema, temos a impressão de estarmos vendo um
pequeno mundo de cima, um microcosmo: há paz em Heorot, mas há guerras logo ali
na Suécia e na Frísia; a viagem de Beowulf por mar é rápida, seu barco é visto
à distância; Heorot é vista de longe.
Tudo começa com uma terra em que os habitantes não
têm lei nem ordem: esta vem das águas, na figura de uma criança, Scyld
(escudo), que não tem linhagem ascendente, ou seja, não parece ter início. Scyld
governa os daneses e conquista a submissão das tribos, ou seja, a Ordem faz
violência para dominar o Caos, simbolizado pelos daneses caídos em anarquia. Ao
morrer, Scyld é devolvido ao mar e seu navio desaparece no horizonte, local
onde o Céu (espirito) parece tocar a Terra (mundo da matéria).
Seus descendentes formam uma linhagem e deles já
podemos dizer os nomes de pais e filhos. Scyld ordenou as coisas e nos seus
sucessores a ordem civilizacional foi mantida, chegando ao ápice pela construção
de Heorot, o grande Salão, em cuja inauguração é cantada a Criação, ou seja, o
ato divino de ordenar o caos primitivo das águas e formar o Mundo.
Heorot é símbolo de estabilidade, do império da
Ordem sobre o Caos, é um microcosmo da civilização: lá dentro temos música e
poesia, bebida e banquetes, mas também hierarquia e papéis sociais bem
definidos; o rei tem sua autoridade e presenteia generosamente, a rainha
entrega a taça de bebida aos convidados de honra e leva os presentes, sendo a
intermediária entre povo e rei; em Heorot há cortesia, generosidade, beleza,
paz. O salão é elevado, sendo visto a grande distância, o que o torna uma
referência para todos.
O pai de Beowulf, Edgetheow, certa vez matou um
homem, desencadeando uma faida (germ.
Fehde, luta privada em que o clã ofendido busca vingar-se) e por isso precisou
exilar-se: Hrothgar o acolheu e pagou por ele o Wergild (preço do sangue,
espécie de indenização), pondo fim à disputa e permitindo que o exilado
retornasse. Isso mostra que Heorot e seu rei eram não apenas um modelo de
estabilidade, mas também um fator estabilizante.
Contrário a isso há Grendel, uma criatura infernal,
que é o oposto do que Heorot representa. Grendel é a anticivilização: é uma
criatura que vive isolada nos pântanos, fora do convívio, o que para S. Tomás pode
ser sinal de uma natureza brutalizada; Grendel representa a Matéria, a primazia
do apetite sobre qualquer ordenação racional, pois ele ataca sem razão, come
seres humanos, mata e devora conforme tem vontade. Com ele não há tratativa nem
acordo, nem possibilidade de pagar o preço do sangue, o que mostra que a
criatura feroz estava fora dos limites da civilização e das leis.
Não é por acaso que o Poema nos apresenta Grendel
como descendente da raça de Caim, o primeiro homicida: com efeito, é narrado
nas Escrituras que Caim, após ter matado seu irmão, foi banido e fundou uma
cidade chamada Henoc. Seus descendentes degradaram-se moralmente na mesma
proporção em que progrediram na Técnica: os cainitas dominavam o pastoreio, a
música e a metalurgia, mas não podemos dizer que constituíssem uma civilização,
porque não possuíam o que é próprio do ser civilizado, que é o domínio dos
apetites pela reta razão.
Leiam as palavras de Lamek, descendente de Caim, que
no começo de Gênesis formam um cântico tão curto quanto brutal:
Ada,
Sila, escutai-me,
Mulheres
de Lamek, ouvi a minha voz,
Eis
que por uma contusão matei um homem,
E
a um menino por uma pedra.
Pois
se Caim era vingado sete vezes,
Lamek
o será setenta vezes sete.
O terrível canto de Lamek é o exemplo de que a
brutalidade bárbara é consequência da falta de medidas e proporções, ou seja,
ausência de domínio do espírito sobre a vontade carnal. Lamek mostra que sua
vingança não é justiça, mas simples satisfação de seus instintos brutais; sua
medida é a sua vontade. Não é olho por olho, mas vida por olho.
Caim fundou uma cidade, mas não fundou uma
civilização; Heorot não é uma cidade, mas nela há a civilização dos Salões,
assim como séculos mais tarde haveria a civilização dos castelos, pois nesses
ambientes se cultivavam valores próprios aos homens civilizados.
Mas Heorot, como modelo de sociedade e figura da bem-aventurança
paradisíaca pós-Criação (ver o canto de inauguração e a constante alegria em
que vivem seus ocupantes) pode cair sob o domínio das trevas. Às vezes, o caos
retorna e a matéria se rebela até que um princípio de Ordem retorne - encarnado
em Beowulf. Ademais, vemos que às vezes não basta um rei justo e patriarcal
como Hrothgar para situações em que o Mal se ergue com toda a sua força:
Hrothgar é um rei dos tempos áureos, do ápice da civilização, ao passo que um
momento de trevas exige a figura de um herói.
Beowulf, nesse sentido, faz a figura do libertador e
purificador, matando o monstro e “limpando Heorot”, que readquire imediatamente
a antiga beleza e aonde retornam a música e os banquetes, com a Rainha passando
a taça de mão em mão, numa espécie de comunhão sacramental.
A Grendel sucede a sua mãe, um inimigo ainda mais
perigoso, mais sobrenatural. O heroísmo de Beowulf é solicitado uma vez mais, e
desta vez a batalha é mais difícil: tudo acontece no mundo subterrâneo, sob as
águas (caos), numa caverna infernal; o herói luta num ambiente que não é o
natural, a espada que recebeu lhe é inútil. A espada enviada por Deus é a que
verdadeiramente lhe serve e simboliza a Graça divina, único meio capaz de
vencer os grandes combates contra os poderes das trevas; nesse sentido, a
espada que lhe foi emprestada por Unferth representa os meios puramente humanos
com que às vezes tentamos combater um inimigo que é sobrenatural.
O Poema, contudo, não é otimista: a cada vitória de
Beowulf, segue-se um discurso do rei Hrothgar, num tom de sermão e de
admoestação, lembrando o quanto a Ordem é frágil e pode ser erodida pelo Caos
quando aqueles que deveriam encarnar a excelência não o fazem. É o caso de
Heremod, o príncipe que enlouqueceu e provocou a ruína dos daneses em outra
época.
Ademais, uma sombra sempre paira sobre Heorot: um
dos conselheiros de Hrothgar, Unferth, é um homem dúbio, de língua dupla,
fratricida, mas está sempre sentado aos pés do rei; a rainha Waeltheow teme
pelos filhos caso o rei morra antes de sua maioridade e quer confiar a Beowulf
o cuidado de ambos. Sabemos que Heorot está destinada à destruição pelo fogo,
devido a uma contenda familiar (outra faida).
A Ordem não se mantém sem virtude e, em alguns casos, sem o Heroísmo que em
Beowulf ganha um sentido mais elevado, pois posto a serviço do próximo.
A primeira proeza de Beowulf contra Grendel foi
realizada como uma retribuição; a segunda contra a mãe de Grendel, Beowulf a
fez por amizade; o terceiro grande combate, contra o Dragão, é motivado pelo
amor ao seu povo. Aquiles buscava a sua glória, foi um grande guerreiro, mas
nunca foi rei, pastor de homens; Beowulf, ao colocar seu heroísmo a serviço do
próximo acaba reinando. Seu tio morreu numa expedição de pilhagem e seu
sobrinho morreu após dar causa a uma guerra: proezas inúteis, heroísmo egoísta.
Contudo, Beowulf não foi retribuído, pois os seus thanes, seus melhores guerreiros,
aqueles que deveriam ser excelentes, à exceção de um por covardia o
abandonaram. Wyglaf, o guerreiro leal, ajuda a matar o Dragão, mas não pode salvar
o seu senhor de seus ferimentos. A morte de Beowulf é a morte do Heroísmo
antigo, a ruína do código de virtudes que mantinha a Ordem e o resultado seria,
inevitavelmente, a derrocada do povo que quedou sem Senhor, à mercê de seus
inimigos: a cena dos funerais de Beowulf é sombria, pois todos sabem serem
sombrios os tempos futuros. O heroísmo altruísta de Beowulf cederia lugar às
proezas brutais com que ficariam famosos os Vikings,
com expedições de pilhagem, estupros e profanações.
O Sacrifício de Beowulf não é suficiente para salvar
a sua gente a longo prazo, assim como a Ordem antiga era incapaz de salvar os
homens: o mundo pagão se esgotava, assim como o mundo do Antigo Testamento e
seria necessária a chegada de uma nova criança, vinda do Oriente, ela mesma
princípio de tudo, que revivificaria os valores pagãos ordenando-os ao seu fim
supremo.
Cristianismo
figurado
Embora a lenda de Beowulf remonte ao paganismo
germânico, a sua versão atual foi redigida no século VIII, numa época em que a
Inglaterra já estava cristianizada. Desde o momento em que S. Agostinho e seus
39 companheiros chegaram a Kent, no ano 596, até meados do século VIII, a
evangelização dos reinos ingleses (eram sete) avançou com um sucesso não visto
em outros lugares.
Sem negarmos as recaídas no paganismo de alguns
reis, a imagem que temos, ao contemplarmos a catequização da Inglaterra, é a de
um Cristianismo sempre vitorioso e que criou raízes profundas. Não é admirável
que, apenas um século depois de missionários cristãos aportarem naquele país,
este já tivesse se convertido num grande celeiro de monges, missionários e
santos? A Cristianização dos povos anglo-saxões é um dos capítulos mais
notáveis da história da Igreja, pela rapidez e pelo sucesso.
Foi nessa Inglaterra cristã que nosso poema ganhou
sua forma. De fato, Beowulf não é um herói comum das lendas nórdicas: ele é
monoteísta, sério e solene, seus discursos são sábios e ponderados; não é
arrogante, nem ganancioso, pelo contrário, é um homem comedido e uma figura
virginal – nunca se casa, nem sobe ao leito de mulheres. Noutros tempos foi pouco
considerado, mesmo sendo um homem de muitos dons e grande força, pois era
discreto e humilde, por isso desprezado no Salão de seu tio. Ao beber, não se
embriagava nem batia em seus serviçais. Era o mais gentil dos homens e o melhor
dos reis.
Basta sabermos que, diante da morte de seu tio e senhor
Hygelac, a Beowulf foi pela rainha Hygd oferecido o trono dos Gautas, que ele
recusou em favor de seu primo Heardred: quão fácil teria sido aceitar a oferta
da rainha viúva e tomar o trono a uma criança. Mas nosso herói tem Virtude, à
qual se contrapõem exemplos de outros homens tomados pela ambição: o Poema tem
um forte tom homilético.
Também são patentes outros simbolismos e figuras
cristãs: Beowulf é um herói redentor, que liberta Heorot, figura da Criação, do
domínio do Mal. O rei Hrothgar e a rainha Wealtheow parecem impotentes para
expulsar as trevas, pois são como figuras de Adão e Eva após a Queda da
Criação, necessitando de um libertador. Ou ainda, o rei, justo e bom, não é em
si um homem repreensível, mas a exemplo dos Patriarcas do Antigo Testamento,
estava à espera de um Redentor.
A descida à caverna da mãe de Grendel parece figurar
a descida de Cristo aos infernos, onde se completou a derrota do demônio –
assim como no Poema se completou a derrota das trevas que se apossaram de
Heorot. O ressurgimento de Beowulf das águas figura o Batismo, que liberta do
pecado; os discursos admoestatórios de Hrothgar após os feitos de Beowulf
assemelham-se a exortações a um recém-batizado, que está puro, mas precisa
saber que o Pecado está sempre à espreita. Neste sentido, a purificação de Heorot
tem um simbolismo batismal: o Salão estava purificado e retomara sua antiga
beleza, mas sementes do pecado estavam ali e poderiam trazer nova ruína.
A espada que providencialmente aparece a Beowulf em
sua luta no subterrâneo é figura da Graça, ao passo que a espada de Edgelaf,
inútil naquele combate, representa os meios de ação puramente humanos – a espada
de Edgelaf, emprestada por Unferth, fora usada para cometer um fratricídio, ou
seja, não se combate o Mal com o Mal, o pecado com o pecado.
O Dragão, inimigo final, é uma criatura do mundo
germânico, igualmente símbolo do Caos primitivo, como Fafnir, o dragão morto por
Sigurd. Na literatura cristã e nas Escrituras o Dragão é imagem do demônio,
sobretudo no Apocalipse. Em Beowulf, o Dragão se apossa de um tesouro escondido
numa caverna: aquele tesouro tinha sido depositado por reis e nobres de outros
tempos e dele se apoderou o Dragão quando faleceu o último representante
daquele reino desaparecido: um tesouro escondido é inútil, infrutífero, e guardá-lo
por si mesmo é Avareza.
A tristeza do Herói antecede a sua luta final,
assemelhando-se à Agonia no Horto; a fala de Beowulf aos seus doze
companheiros, dizendo-lhes que iria aonde eles não poderiam ir, lembra o último
sermão de Cristo antes da Crucifixão; o abandono dos Onze, à exceção de um,
lembra a fuga dos Apóstolos e a fidelidade de S. João.
Seria exagerado afirmar que o mundo descrito pelo
Poema seja cristão. Não o é, e o autor bem sabia disso: o tempo dramático, por
assim dizer, é a Idade Heróica, um passado muito remoto ou o século VI, em que
viveram algumas personagens históricas a que Beowulf faz referência. Contudo, longe de ser uma exaltação ao
paganismo em si, como pensaram muitos teóricos do século XIX, trata-se antes de
uma tentativa de inserir esse passado pagão na economia do Antigo Testamento e
encontrar em heróis de outrora modelos de homens justos, que não foram cristãos
por viverem antes de Cristo, mas que por suas virtudes e sua obediência à Lei
Natural, mereceram morar no seio de Abraão e, na descida de Cristo aos
infernos, serem batizados no Evangelho.
A opinião de J. R. R Tolkien é a de que o autor de Beowulf era cristão e estava longe de
ser um homem confuso e de pouco conhecimento das Escrituras. Ao contrário, o
Poema tem muitas reminiscências à Patrística e teria sido escrito no período
áureo da evangelização da Inglaterra e da própria expansão missionária inglesa,
quando os ancestrais pagãos ainda eram lembrados: o autor era um homem que
tinha respeito pelo que havia de nobre no passado pagão dos Saxões,
considerando que muitos heróis de outrora, por sua nobreza de espírito, teriam
feito parte da alma da Igreja antes mesmo de a conhecerem.
Beowulf não é Cristo, mas sua pré-figuração inserida
na literatura pagã. Assim como o Antigo Testamento tem inúmeras pré-figurações
do Redentor, também o Poeta as quis colocar na grande literatura de seu povo,
conferindo a reis e guerreiros de outrora um “lugar em um capítulo não escrito
do Antigo Testamento” (Palavras de Tolkien).
Nem tudo é erro na literatura dos pagãos, pois seus
mitos e suas tradições também contêm verdades cridas por cristãos, e, nas
palavras de S. Justino, “as verdades dos pagãos pertencem à Igreja”.
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