Não é novidade para ninguém, ou para qualquer aluno do Direito, que o poder de governo nas democracias modernas é dividido em suas funções administrativa, legislativa e judiciária. Sim, hoje em dia já caiu em desuso acadêmico chamar de três poderes para chamar de três funções, uma vez que o poder em si é indivisível e – para esta democracia – emana do Povo.
Mas a verdade é que jamais na história humana o poder foi exercido por uma só pessoa. No Império Oriental, que fundamentou a hipertrofia dos poderes espirituais e governamentais doImperador, havia uma maior concentração, mas dentro de uma idéia de ultima ratio. E que não valia a consideração do Imperador questões menores de Estado, e dentro da aplicação da justiça, era-lhe tão somente reservada a última instância de juízo. Algo similar ocorria com a legislatura, vez que era mais próprio do Imperador promulgar, conquanto que as leis eram, no mais das vezes, recolhidas da tradição e dos costumes, ou da Jurisprudência dos magistrados.
No Ocidente, ao contrário, houve o florescimento de um sistema mais difuso. A instabilidade política, o sistema feudal, o choque cultural com a romanização dos bárbaros, a necessidade do comércio, o próprio sistema eclesiástico, todas essas nuances forjaram um caráter diferente – talvez por esse caráter o Ocidente foi dado às revoluções, enquanto o Oriente manteve sua característica de unificação em uma autoridade com ares míticos. O comum era a divisão da responsabilidade, apesar da modernidade do termo, ao menos nas questões civis.
O fenômeno que vai se desenvolver, ainda nos primórdios da Cristandade, inicia-se com o municipalismo. Há uma tecla que nós gostamos muito de bater aqui no Medievalitas, e é a de que o romano, ou o homem medieval, é sobretudo pragmático e realista ao extremo: o Império que não morre é uma existência moral e jurídica, a qual se tributa todo o valor em se reconhecer parte de um todo tão formidável, mas é a cidade o quinhão de terra onde se assentam casas, trabalha-se e se vive. A necessidade de sobrevivência e o perigo iminente criou um sistema de responsabilidade compartilhada: o senhor feudal bem devia proteger seus vassalos, mas estes possuíam suas terras, com o pagamento dos devidos impostos, para trabalhá-la, fazê-la prosperar e enobrecer-se por meio dela. Quanto mais se estendiam os domínios do monarca, mas subsidiária era sua atuação.
A necessidade de organizar essas cidades e a especialização dos trabalhadores fez surgir os conselhos de cidade e os foros, limitantes naturais do poder real, onde os representantes populares recebiam mandatos representativos – verdadeiros contratos com limites de representação bem definidos – a fim de decidirem questões mais complexas, como a declaração de guerras, revisão de impostos ou concessões de privilégios; tal administração não era um elemento de contradição ao monarca, senão um direito estabelecido pelo mesmo através da carta de doação ou testamento que concedia a um certo fidalgo o direito sobre certas possessões – direito este muitas vezes recebido em decorrência de conquistas ou pela necessidade de proteção das terras. Tratava-se sumamente de garantir a boa-fé, e de que o monarca, mesmo sendo soberano, governasse sob a lei.
Sempre foi normal ao Ocidente que tivéssemos multiplicidade de administrações, com suas esferas e poderes compatíveis com sua responsabilidade. Sempre foi normal uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, existindo leis particulares nas guildas e corporações de ofício, como leis municipais, locais e pátrias, que se interpretavam à luz dos princípios de hierarquia e Direito. E o juízo não era muito diferente de sua atual organização, mas era certamente menos ideológico e mais jurídico.
E o que temos hoje? Perdemos completamente esta complementariedade e proporção em troca de um Estado inchado, que concentra suas decisões em um governo central, e ainda pior, depende de um ineficaz sistema de pesos e contrapesos.
Duas são as principais diferenças entre a democracia moderna e as formas clássicas de governo: a reunião permanente do legislativo e a ineficácia da tomada de ação.
É verdade, poderíamos citar uma miríade de diferenças a depender do ponto de vista que quiséssemos exaltar, mas dentro da aplicabilidade de um governo, estes dois pontos são essenciais para entendermos a inaplicabilidade do sistema moderno para o tão sonhado progresso que nossos amigos liberais tanto tentam nos vender.
Primeiro, quem ouve pela primeira vez que a Revolução Francesa começa com a convocação dos Estados Gerais não consegue compreender bem o que lê. Já acostumados a seguir a lógica dos teóricos dessa revolução, não concebemos um governo em que o legislativo não esteja em constante trabalho legal. A consequência direta desse problema é a criação do político profissional e a multiplicação absurda de leis.
No nosso atual sistema tudo é feito através de leis, de forma que até mesmo a noção precisa de lei se perde um pouco e se confunde com qualquer texto com potestade estatal. Portarias, Decretos, Regulamentos, que são mais matéria de administração, integram-se na hierarquia das normas com as Leis Ordinárias, Complementares e Emendas. Assim, o homem moderno vai se acostumando a esperar que a realidade brote de um ordenamento, e não o contrário. Não se trata simplesmente de requerer um maior uso do costume como fonte do Direito, é mais profundo do que isso, trata-se da necessidade de resgatar um senso de realidade, em que a conduta é definida pela natureza e a lei não é mais que a cristalização de princípios.
Além do mais, esta miríade legal acaba existindo para justificar o trabalho constante de deputados de todos os tipos, atrasando processos essenciais em meio a votos absurdos, pelo simples desejo de regular todos os atos. A representação dessas autoridades também fica prejudicada, porque esse trabalho colossal termina por afastar a sociedade, que pouco ou nada compreende do processo legislativo que tramita nas câmaras, e sequer tem interesse em acompanhar o processo, porque isso exigiria do cidadão comum a observância constante sobre infinitos pontos que pouco tem a ver com sua rotina comum.
Aliás, a representação fajuta de um sufrágio universal, sem a devida separação natural das classes sociais, faz com que os representantes do povo não tenham interesses próprios, mas interesses de momento. Tudo isso facilita que as assembléias sejam dominadas por partidos menores, enquanto a mídia manipula o povo, que mal sabe a composição oficial do mais de 500 deputados federais. Isso para não falar o desfalque nas reservas públicas que isto causa, ainda mais quando não há um efetivo balanço e fiscalização dos gastos de gabinete. São usos do tráfico de poder.
Se só isso não bastasse para abalar as estruturas de qualquer governabilidade, alguém teve a brilhante idéia de usar um sistema de contrapesos, onde cada um dos poderes fiscaliza o outro, a fim de evitar seus excessos. Este é o sistema que faz da democracia a forma mais ineficaz de tomada de decisão. Toda e qualquer empresa sabe que para prosperar ela precisa da capacidade de tomada de decisão rápida e fins muito práticos e determinados, metas claras e sentido de missão. Tudo isso se torna impossível quando o avanço de suas estratégias depende de um complexo jogo de apoio institucional, em que o foco não é a prosperidade, mas evitar a possibilidade de uma tirania. Mas vou contar um segredo aos mais incautos: até nisso a democracia se mostra um fracasso, porque, no fim, um dos poderes acaba se sobressaindo aos demais, e nos sistemas de tribunais constitucionais, sói ser o judiciário a tomar esse papel de protagonismo, judicializando qualquer decisão de governo.
O pior dos erros dessa divisão de poderes é a de subverter a ordem natural, fazendo a norma anteceder ao fato, a legalidade à legitimidade e o poder à autoridade. No fim, toda a democracia moderna sofre de uma grave hipocrisia, onde se afirma o governo da maioria, mas dentro de uma vontade geral que se afirma nas câmaras, sem que ela necessite corresponder aos desejos da nação. Se algum progresso é permitido, é sob o necessário tributo ao deus-Estado.
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