No dia 25 de outubro de 1415 ocorreu a batalha de Azincourt,
celebrada em canto por John Dunstable - que compôs a Agincourt Carol - e
imortalizada na peça Henrique V - de Shakespeare - com o famoso discurso do
Dia de São Crispim. Azincourt é o nome de um vilarejo e de um castelo, perto
dos quais teve lugar a batalha que opôs exércitos da Inglaterra e da França.
A Guerra dos Cem Anos
A Guerra dos Cem anos, como a conhecemos, foi um período de
guerras entre Inglaterra e França, particularmente marcado pela reivindicação
que os reis ingleses fizeram da Coroa Francesa. A Guerra dos Cem anos teve
início em 1337 e, para fins didáticos, os manuais datam o seu fim no ano 1453,
após a Batalha de Castillon.
Entre 1337 e 1453, contudo a Guerra dos Cem anos teve
diferentes fases, entremeadas por longos anos de trégua. Podemos, para
esquematizar, dividir aquela guerra em cinco fases: 1a fase - De 1337 até a
Batalha de Crécy, com a tomada de Calais e o início da Peste (1347), marcada
por vitórias inglesas; 2ª Fase – retomada das hostilidades e novas vitórias
inglesas, como Poitiers (1356), captura do rei João II da França e a Paz de
Brétigny (1360); 3ª Fase – com a estratégia do Condestável Bertrand Du Guesclin,
a França recupera quase todos os territórios perdidos (1370-1377); 4ª Fase (1415-1429)
– após 35 anos de trégua, vem uma fase de vitórias inglesas que se encerram com o advento de Santa Joana D’Arc; 5ª Fase
(1429-1453) – declínio constante do poder inglês no Continente e gradual
recuperação francesa até a expulsão dos invasores – exceto de Calais,
que ainda seria um enclave inglês até 1558.
Apesar de aquele conflito ser considerado uma das forjas em
que se modelaram as identidades nacionais Inglesa e Francesa, em sua maior
parte ela foi uma guerra feudal entre famílias reais e aristocráticas que
compartilhavam laços de sangue, língua e cultura.
Com efeito, a aristocracia inglesa tinha origem na França; os
reis da Inglaterra eram descendentes diretos de nobres e reis franceses, e não
raro eram casados com princesas da França. Em suma, não seria exagero dizer que
se tratava de franceses lutando contra franceses, peculiaridades de um mundo em
que seria anacrônico falar em “Estados Nacionais”.
O início da Guerra ocorreu por motivos dinásticos e
territoriais: o primeiro era a questão da Sucessão do Rei Carlos IV, o último
rei Capeto, que morreu sem descendentes, e a cuja sucessão aspirava o rei
Eduardo III, da Inglaterra, preterido em favor de Felipe VI de Valois.
A questão territorial foi o confisco da Guiana pelo rei Filipe VI, território
que outrora fizera parte do Ducado da Aquitânia e que desde 1259 era possuído
pelos reis ingleses a título de benefício em troca de sua vassalagem aos reis
da França – ver o Tratado de Paris, de 1259, entre São Luís IX e Henrique III.
Henrique V
Em 1399, o rei Ricardo II da Inglaterra era preso no sombrio Castelo de Pontefract, vítima da usurpação de seu primo, Henrique Bolingbroke, de Lancaster, que se tornou rei Henrique IV (1399-1413). A este sucedeu seu filho, Henrique V (1413-1422).
Não se sabe quão verdadeira ou lendária é a sua imagem de um
jovem dedicado aos prazeres irresponsáveis, mas ainda que cedera às efervescências
de sua juventude, não é menos certo que desde cedo se tenha igualmente
entregue a obrigações de príncipe real.
Sua ascensão ao trono foi tranqüila, marcada por otimismo e
reconciliação geral do reino: o jovem príncipe era cavalheiresco, de compleição
bela e bom cristão. Ardoroso, também ansiava por fama e por emular-se com seus
antecessores, como Ricardo Coração-de-Leão e Eduardo III. Com efeito, falava em
liderar uma Cruzada da Cristandade contra os turcos e ao mesmo tempo tinha os
olhos voltados para a França, cuja Coroa julgava sua por direito.
Na sessão do Parlamento de 1414, Henry Beaufort, bispo de
Winchester e Chanceler da Inglaterra, abriu os trabalhos com um sermão sobre “Lutar
pela verdade até morte”, o que, no clima geral de reconciliação e de busca por
um inimigo externo, foi entendido como atacar a França.
A França
A segunda metade do século XIV (especificamente os anos 1370-1377) foi um período
feliz para as memórias militares francesas. Sob a liderança do Condestável Bertrand
Du Guesclin (*1320 + 1380), bretão de férrea têmpera e invulgar senso tático, logrou desgastar
e corroer os frutos das vitórias inglesas de décadas anteriores.
Idoso, cada vez mais solitário e demente, vendo seu único
filho, Eduardo, o Príncipe Negro, arrebatado pela Peste, o rei Eduardo III parecia
desvanecer, sombra do que fora em sua brilhante juventude, quando aos quinze
anos vingara o assassínio de seu pai; aos 28 invadira a França, aos 34 vencera
em Crécy e sujeitara Calais. Seu brilho empalidecia na névoa do tempo. Morreu em uma casa no campo, assistido unicamente por um sacerdote local.
Do outro lado do Canal da Mancha, de vitória em vitória, aproveitando-se de oportunidades,
atacando guarnições isoladas, perturbando o abastecimento, os franceses
retomaram tudo o que fora perdido na primeira fase da guerra, com exceção de
Calais e Bordeaux - capital do ainda ducado da Aquitânia, possessão inglesa..
As perturbações do reinado de Ricardo II (1377-1399) da
Inglaterra e a descoberta da loucura de Carlos VI (1380-1422) da França,
mantiveram ambos os reinos ocupados em problemas internos.
Em França, os surtos esquizofrênicos de Carlos VI - iniciados em 1392 - o deixavam
cada vez mais incapaz para o governo, o que levou ao surgimento de partidos de
interesses, cada um tentando controlar a pessoa do rei.
Quando Carlos VI estava lúcido, ele ouvia o seu irmão Luís, duque
de Orléans; quando incapacitado, era João, Duque de Borgonha, e seus
partidários que dominavam os negócios do reino. As disputas entre os dois
partidos levaram ao assassinato de Luís d’Orléans (1407), e delas tirou proveito o
jovem Henrique V para iniciar sua invasão à França, em 1415.
A Campanha
Henrique V cuidou que a Inglaterra estivesse estável e em
paz: perdoou antigos inimigos e mandou que o corpo de Ricardo II - assassinado por Henrique IV - fosse trasladado para Westminster e sepultado com honras reais.
Buscou financiamento para a sua campanha por meio de homens
de negócios, empréstimos e penhor de parte das jóias reais – incluindo as que
compunham sua coroa.
Havia muito que o recrutamento militar na Inglaterra se baseava em contratos: mesmo Eduardo I (1272-1307), com sua personalidade forte e sucessos militares, não conseguia pôr em campo mais que 277 cavaleiros, valendo-se unicamente do chamado aos deveres feudais.
A maioria dos cavaleiros e nobres preferia pagar a escudagem (scutage) em troca da dispensa de servir diretamente em campanha – exceto se nela tivessem interesse pessoal. Muitos jovens escudeiros, de famílias mais abastadas, evitavam o status de cavaleiros, para não precisarem arcar com os custos e as obrigações que lhe eram inerentes.
Tanto Eduardo I (1272-1307), para suas campanhas em Gales,
como seu neto Eduardo III (1327-1377) para as suas em França, tiveram
que recorrer a taxações sobre a lã e a empréstimos às grandes casas bancárias
italianas (Ricciardi, Peruzzi, Bardi, etc), que tinham filiais em Londres.
Henrique V recrutou um exército de tamanho modesto, composto
em sua maioria por arqueiros, tropa mais barata: com efeito, devemos lembrar
que a Inglaterra sofreu forte impacto da mortalidade de 1348-1350, vendo sua
população diminuir de 3 milhões em 1340, para apenas 1 milhão (ou menos) no começo do
século XV.
Se Eduardo III chegou a pôr em campo, nos anos 1340, quase 30.000
homens, Henrique V não levaria consigo mais que 8.000. Desses,
aproximadamente 6.000 eram arqueiros, combatentes baratos, oriundos do povo miúdo, armados com arco longo - além de adaga, maça, machados - e pouca ou nenhuma proteção
corporal.
Assim, prejudicada econômica e demograficamente, a Inglaterra
não podia mobilizar exércitos numerosos, tampouco grande quantidade de soldados
bem equipados – homens em armas, melhor providos e oriundos da classe média
rural, tropas montadas de cavaleiros ou escudeiros, etc.
Calcula-se pois, que Henrique V levava aproximadamente 6.000 arqueiros (ganhando alguns pences por dia) e cerca de 1.500 homens em armas, estes bem pagos e equipados – aproximadamente 80 deles nobres ou com status de cavaleiros (knights), e o restante homens de melhor condição, escudeiros ou soldados profissionais.
A tradição de empregar arqueiros em campanhas remontava às guerras galesas de Eduardo I, que enfrentara os habilidosos arqueiros daquelas terras montanhosas e percebera a eficácia daquela arma. Desde então, o arco-e-flecha foi encorajado e difundido em toda a Inglaterra, sendo um dos poucos esportes permitidos aos domingos: em algumas gerações, grande parte dos ingleses comuns saberiam manejar um arco, mirando e atirando com eficiência. Os arqueiros eram, pois, limitados em combate corpo a corpo e de choque, mas tinham a vantagem de serem baratos e numerosos.
Henrique V contratou navios e mandou construir outros que o
levassem à Normandia, outrora pertencente aos seus antepassados. Não aportou em Calais, cidade mais próxima e sob controle inglês. Em vez disso, atacou e conquistou
Harfleur após um cerco de cinco semanas, em que perdeu muitos homens para a
disenteria. De Harfleur, os ingleses pretendiam seguir para
Calais, onde embarcariam de volta para a Inglaterra.
A Batalha
Marchando rumo a Calais, os ingleses estavam cansados,
enfraquecidos pela disenteria – que lhes custara muitos homens – e pelos
combates; famintos e sem água limpa.
Embora dividida pelos partidos Borgonhês e Orleanista, a França ainda podia levantar um exército numeroso, pois sua nobreza atendia aos chamados para o serviço do rei, oportunidade de provar o seu valor. A Inglaterra não podia pôr em campo uma grande quantidade de cavaleiros montados, e mesmo seus cavaleiros mais nobres lutavam a pé, usando cavalos apenas para deslocamentos.
Os franceses, por sua vez, podiam levar milhares de cavaleiros pesados ao campo de batalha, apoiados por escudeiros e infantes em armas. O Condestável de França, Charles d’Albret, estava à frente de 25.000 homens, sendo 5.000 cavaleiros montados, incluindo a fina-flor da nobreza francesa - por exemplo, o Duque de Orléans e o Conde d'Alençon,
Os franceses bloquearam os ingleses entre a aldeia de
Maisoncelles e o castelo de Azincourt, montando acampamento. Os ingleses
acamparam perto de Azincourt, já extenuados pela marcha e enfraquecidos pela
doença. Henrique V não queria atacar uma força cinco vezes maior, e ao mesmo
tempo os franceses eram cautelosos ao atacar os ingleses em campo aberto.
No dia 25 de outubro, pela manhã, Henrique V viu-se forçado a
tomar iniciativa de ataque, pois o tempo urgia e lhe era desfavorável.
Os arqueiros ingleses levavam, cada qual, uma estaca de
madeira que podia ser fincada ao solo para proteção contra cavalaria – mesmo o
mais arrojado cavaleiro temia avançar contra fileiras de estacas. Eles foram
posicionados nos flancos, como de costume entre os ingleses; o centro era
composto por aproximadamente 750 homens, melhor armados que os arqueiros e divididos em três blocos comandados pelo Rei, pelo Duque de York e pelo Lorde
Camoys.
Os Franceses dividiram-se em três ordens de batalha (Batailles), tendo
besteiros e alguns canhões na retaguarda.
Os ingleses iniciaram o ataque, posicionando-se entre dois
bosques; lançaram saraivadas de flechas contra os franceses, que mandaram dois
esquadrões menores de cavalaria para aniquilar os arqueiros, que os repeliram.
A primeira linha de batalha francesa avançou contra o centro inglês,
sendo fustigada por flechas e atrasada pelo lamaçal – a noite fora chuvosa -,
com a cavalaria pesada progredindo lentamente. Ademais, o terreno tinha um
estreitamento que forçou os franceses a se aproximarem uns dos outros, gerando
uma massa humana compacta, o que lhes prejudicou a mobilidade a ponto de muitos
não poderem brandir suas armas.
Nesse momento, os arqueiros ingleses pararam de atirar, sacaram suas armas secundárias e atacaram essa primeira linha francesa pelos flancos: os franceses, atolados e amalgamados, foram atacados em três lados por combatentes mais leves e com melhor mobilidade. Grande foi a consternação dos nobres franceses ao se verem acometidos por gente de origem inferior - para a nobreza, a honra estava em lutar contra iguais.
Os franceses se viram numa posição similar à dos romanos em
Canas, com a diferença de que sua retaguarda ainda era livre, permitindo recuo. Muitos caíram e morreram afogados – como o Duque de York – na lama, com
o peso do equipamento; cavaleiros franceses caídos, sem mobilidade, eram alvos
fáceis para os arqueiros ingleses, que os matavam com adagas, maças e machados.
A segunda linha francesa chegou ao ponto de batalha, com o
Conde de Alençon lutando bravamente e pondo em apuros o Duque de Gloucester,
irmão do rei Henrique. Este veio em seu socorro, lutando heroicamente em
meio aos homens, chegando a receber um golpe em seu elmo, que lhe arrancou parte
da coroa.
Os franceses recuaram e os ingleses começaram a mover os
prisioneiros para o seu acampamento; a terceira ordem de batalha francesa ainda
tentou uma nova ofensiva, mas foi atrapalhada pela lama e pelos corpos, sendo
por fim repelida pelas flechas dos arqueiros.
Uma pequena tropa francesa, saindo do Castelo de Azincourt,
saqueou o acampamento inglês, o que levou Henrique a pensar que uma outra força
o atacava pela retaguarda; vendo que os franceses ainda tinham reservas
e temendo que houvesse outro exército francês atrás de si, Henrique,
violando os costumes cavalheirescos, ordenou a lamentável execução dos 200
prisioneiros franceses, alguns da alta nobreza. Contudo, ao perceber que a
ameaça se dissipara, Henrique mandou que cessassem as mortes - brutalidade que só se poderia compreender pela ótica do mais puro desespero.
Mesmo ainda dispondo de enorme vantagem numérica, os franceses, sem liderança certa e ainda confusos, preferiram
não realizar novos ataques, permitindo aos ingleses seguir em marcha e
atravessar o rio Somme até Calais.
Após a Batalha
A derrota francesa privou o reino de grande parte de sua nobreza, que morreu ou foi aprisionada. Pelo menos três duques franceses foram mortos, além de outros 2.000 nobres e homens de armas. Alguns historiadores referem números ainda maiores, mas certamente não houve um massacre em massa de franceses, como já se quis fazer crer: ao final da batalha, o número de franceses ainda superava o de ingleses em pelo menos 3,5 ou 4 para 1.
Os ingleses perderam entre 400 e 700 homens - incluindo o Duque de York -, de um total de 5.700.
Henrique pôde prosseguir até Calais, onde ele e seu exército se abasteceram de comida e refizeram-se de seus achaques; Henrique retornou à Inglaterra como um conquistador
vitorioso.
As vitórias na França costumavam elevar a popularidade dos reis e da guerra, facilitando a obtenção de recursos do Parlamento, bem como o recrutamento de homens - a captura de prisioneiros nobres era lucrativa, por causa dos resgates. Em 1416, Henrique voltaria a invadir a França, conquistando Caen (1417) e Rouen (1419); em 1418, a própria cidade de Paris caía sob o controle do partido Borgonhês, aliado dos ingleses, forçando o Delfim Carlos a fugir para Bourges, ao sul do Loire.
O rei da França, Carlos VI, foi forçado a assinar o Tratado
de Troyes (1422), renegando seu filho, o Delfim Carlos, e nomeando Henrique V
seu herdeiro, além de lhe dar sua filha, Catarina de Valois, em casamento.
Henrique V morreria antes de Carlos VI; seu filho com Catarina, Henrique VI, ainda bebê, ficaria sob a tutela de seu tio, o Duque de Bedford, que comandaria a política e as campanhas inglesas na França pelos anos seguintes. Após a morte de Carlos VI, seu filho, o futuro Carlos VII, questionou o Tratado de Troyes e, em 1429, com o auxílio de Santa Joana d’Arc (1412-1431), seria coroado rei, iniciando novo período de sucessos militares até a vitória final em Castillon (1453).
A aventura de Henrique V foi ousada e modificou os métodos empregados ao longo do século XIV: as cavalgadas (chévauchées), com suas devastações e pilhagens, foram substituídas por um projeto de conquista de cidades e ocupação territorial, começando pela Normandia (Rouen, Caen, Cherbourg). Contudo, apesar das vitórias iniciais, os recursos militares, populacionais e financeiros da Inglaterra se mostrariam aquém de suas ambições, e a aventura na França, insustentável a longo prazo, terminaria com a expulsão definitiva das tropas inglesas - exceto de Calais.
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